Capa > Lima Barreto > Sobre carnaval … e futebol

Sobre carnaval … e futebol

Música (com letra) Na tonga da mironga do cabuletê

Lima Barreto, em crônica de fevereiro de 1920[1], relata o recebimento do seguinte telegrama:

Belo Horizonte, 13 (Serviço especial da A Noite) — A Liga pela Moralidade oficiou ao chefe de polícia, pedindo-lhe que proíba às bandas de música, que vão tocar nos coretos da Avenida Afonso Pena, durante o carnaval, a execução de tangos e maxixes. A mesma Liga alega nesse ofício que tais músicas são provocantes. (Sobre o carnaval, v. 2, p. 137)

O Jornal O Tempo, na capital mineira, assinala na sua edição de 20 de setembro de 2011, com relação à lei federal que libera bebida alcoólica nos estádios para a Copa do Mundo de futebol de 2014 (p. 31):

Sérgio Barroso, secretário extraordinário da Copa do Mundo, informa: “o Estado de Minas Gerais vai obedecer a todos os acordos firmados entre o governo federal e a Fifa, mas eu, enquanto secretário extraordinário da Copa, não sou a favor da venda de bebidas alcoólicas dentro dos estádios […]”

Belô, e o mineiro em geral, ressente-se de vícios absolutos e pecados imundos. O fumante de crack, quando a repressão chega, mete o rabinho entre as pernas e vai saindo de mansinho. O assassino da ex-mulher refugia-se num quarto de motel e se mata. Nas famílias, não há uma garota que assuma que está saindo de casa para se prostituir. Daí não haver clima para criação de músicas como “O ébrio”, “Vingança” ou “A vida é um moinho”. No máximo um Vander Lee com Alma Nua, pedindo inspiração a um pai celestial. Aqui é tudo meia-boca. A única coisa assumida com visceralidade é a corrupção. Desde a República Velha que as práticas patrimonialistas e o descaso da classe política para com o bem-estar da população vêm fazendo escola no Brasil. Isso sem contar a ganância dos empresários. A cidade e a população que se danem.

Nos anos 1960s, eu meus amigos de periferia, no calor dos teens ages, começávamos a noite de carnaval pelo Ferreira, onde dividíamos dois tropeiros individuais por cinco. Os dois ovos ficavam para os quatro que tivessem ganho na purrinha. Só quando tinha grana sobrando é que arriscávamos o Caol ou o buchinho do Palhares. A garrafa de cachaça, a mais barata e de pior qualidade, dava bem pra todos. De lá, bem alegrinhos, íamos para a avenida Afonso Pena ver o desfile dos blocos: Imigrantes, Magnatas, Boca Negras, Boca Brancas… Dinheiro para ir aos bailes dos clubes, nem pensar. Bem, pensar podia. Nas grandes sacanagens que deveriam estar rolando por lá, uísque e champagne dando pelas canelas. Na falta disso, ficávamos junto à multidão de nosso nível, acotovelada bem perto dos carros alegóricos, pulando e cantando as músicas de cada bloco, Olhando as mulheres rebolando lá no alto, os garotões agarrados a elas.

Era muito legal. A gente procurava ficar encostado na bunda de alguma garota mais permissiva, remexendo atrás dela, ao balanço do bloco. Às vezes sujava, e nós, após cada um ter levado sua cota de tapas na cara, beliscões e xingamentos, caçávamos o caminho de casa. Depois de um passeio voyerístico pelos hotéis Montanhês e Maravilhoso – sem condições etárias e financeiras de acesso às mulheres – , descíamos a rua Guaicurus e subíamos a Espírito Santo para pegar o ônibus de volta ao bairro. Passávamos o resto da noite contando reciprocamente histórias de trágicas aventuras e memoráveis conquistas. Sempre ficção. Em verdade, já se consumia cocaína, fumava-se maconha e pessoas se afundavam no alcoolismo. Mas de 1920 a 2012 o espírito da cidade é assim.

Recende, pelo ar que envolve a deliciosa comida mineira, um laivo de castração e recalque. Não costumo mais usar para as pessoas os termos conservador e reacionário. Nem mais culpo oligarquias e nepotismos pelo exílio que me foi imposto pelo tesão e atavismo, já que por onde andei nunca me senti estrangeiro.

Isso mesmo. Logo que me formei, em 1970, mudei-me para outras terras, costumes mais liberais, afetos mais expandidos. Em Cuiabá e depois no Rio de Janeiro recuperei minha fé no primado da festa e da carnavália.

Mas voltei. Passando antes uns anos em Brasília para ir me aclimatando. E agora a mineiridade tenta me resgatar por entre moelas com jiló, costelinhas de porco com canjiquinha e frango ensopado com orapronobis. Vou me preparando para as Copas das Confederações em 2013 e do Mundo em 2014. Sem muitas esperanças de poder tomar um chopinho assistindo o jogo e depois pescar um peixe bom na Lagoa da Pampulha. (BH, nov 2012)

 

 

 

 


[1] Resende B.; Valença, R. (Org.). Lima Barreto Toda Crônica. Rio de Janeiro: Agir, 2004. 2 v

 

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

[ + ]