Assim, se passaram dez anos
Sem eu ver teu rosto
Sem olhar teus olhos
Sem beijar teus lábios
Assim, foi tão grande a pena
Que sentiu minh’alma
Ao recordar que tu
Foste meu primeiro amor
(Rafael Hernández/Lourival Faisal)
No decorrer de nossas vidas, nem sempre conseguimos diferenciar o transitório do permanente. O tempo, que a tudo relativiza, deixa em cada pessoa, protagonista de um mesmo evento, diferenciadas marcas. São rasas? Profundas? Doces? Doloridas? Nunca sabemos ao certo. A colaborar na busca do conhecimento, pequenas pistas nos surgem, periodicamente, aqui ou ali.
Rio. Janeiro de 82.Errei de novo. Acabo sempre entrando no lado internacional do aeroporto. O cara do chequim me olha de cara feia, atencioso: “o terminal doméstico é do outro lado, senhor”. Senhor… Saco! Novamente essa falsa delicadeza com que querem nos engambelar. Afasto-me arrastando o violão, a sacola das Lojas Americanas com o monstruoso Lennox Sound, seus dois alto-falantes de olhos arregalados prontos a esguelar um rap emputecedor da elite sem-vergonha que se prepara para sair do País. Cambada de salafrários! Todos se fingindo pessoas sérias, honestas, ocupadas. “Fariseus! xingo, calado (A espada de Jah, um dia, os ferirá de morte, rosno. Não perdem por esperar).” Tropeço num gringo que passa de braço dado com uma mulher de óculos escuros, envolvida num casaco de pele. (Porra, se eu, de camiseta, já estou suando cachoeiras, imagina ela nesse calor de quarenta graus e ar condicionado-casa de conjunto habitacional-construído pelo governo – quando faz calor, torra, quando frio, congela.)
O gringo ultrapassa o portão, à frente da mulher. Puxam mulata menina-moça pela mão. Lindinha. Olhos vivos por baixo da maria-chiquinha amarrada de laços de fita e carinho materno. Filha deles não parece ser. Cor de canela suave, seis da tarde. Não é clara que dê pra ser filha dos dois. Dela, talvez. Gozado, os traços da ninfetinha me parecem estranhamente familiares. Indo pro exterior? (Coitadinha, vai virar comida de gringo, penso, aborrecido.)
Olho pro vidro. Enquanto o idiota mostra os papéis, a mãe (deve ser…) fica de frente pra mim. Rosto interessante. Oval. Bonito. Lábios bem vermelhos. Boto o rádio de rato de praia no chão. Passo as costas da mão no rosto prafastar o suor. Olho o relógio: ainda tô no horário. A mulher se aproxima do vidro. O gringo puxa-a pelo braço. Ela acho que me olhando. E eu pra ela. Faz como que um sinal pra mim. Chego mais. O gringo desesperado. O alto-falante do aeroporto grita: “Atenção passageiros da Lufthansa com destino a Frankfurt, Paris, Los Angeles, Singapura (algum lugar desses, não me lembro mais, porra!), última chamada!”. Tira um batom da bolsa. E escreve, com calma, tivesse todo tempo do mundo: ACEBER. “Rebeca.” “ Ah…!”
Cuiabá. Início dos 70s. Balneário Santa Rosa. Logo à frente de quem entra, ao alto, a pouco mais de um metro, o pequeno salão de dança, onde casais harmoniosamente atracados voluteavam ao som de boleros e guarânias, executados por orquestra heterogênea: ao lado de uma bateria alinhavam-se violões, guitarra, bandolim, bongô e harpa paraguaia. No chão, triângulos, reco-recos, frigideiras, maracas, marimbas, o escambau. O cara da harpa, eclético, de vez em quando pulava pro cavaquinho, prum ganzá…. Muito bom. Umas vezes só orquestra. Outras entrava um cantor de voz paraguaia, roupa de argentino, repertório multinacional. Voz romântica e acalentadora, clássicos de todas as épocas e lugares: La Barca, Sabor a mi, Sempre no meu coração, My prayer, Sabor de pecado, Anahí, Una lacrima sul viso, Great pretender…
Embaixo, ao nível da entrada, no longo piso azulejado que se iniciava logo ao fim do gramado delimitado por buganvílias lilases, amarelas, laranja, ficavam as mesas. Sempre cheio. Mulheres fazendo programas, ninfetas à cata de seus bóizinhos (e de seus coroazinhos, por que não? “Prostituição infantil é crime”! Esqueceram de contar pro pessoal lá, hehehe…), cafetões, deputados, empresários; amadoras a fim de iniciar um romance, efêmero que fosse; garçons, suados em suas roupas de pinguim equilibrando bandejas com garrafas e comidas, xingados por servidos e não servidos; românticos inveterados, que viam no local clima para o mágico despertar de sempre novos amores, sob os sabores e as cores do pecado; guardadores de carro que, quando a gente voltava, olhavam como se você fosse um ET, sem a menor noção de quem era o dono de quê. Uma bagunça generalizada. Mas tudo era legal. O uísque bom, paraguaio escocês legítimo. Parafraseando Orson Welles: “o Balneário, naquela época, era onde se bebia o melhor uísque falsificado de Cuiabá”.
Noite fresca, lua clara, de lobisomem. Tinha chegado tarde. Encostei precariamente meu corcel getê (lembram-se dele?) e fui procurar mesa. Cumprimenta um, outro. Olha aí o (aqui não fico não) Ângelo (companheiro da República Federal e Democrática da Rua Villa Maria. Hoje, aquela casa de múltiplas luxúrias, vetustos sambas e cambaias poesias, não existe mais. Ah, Cuiabá, infeliz cidade que não preserva seus monumentos.) (Tá muito bêbado…). Passei por outra mesa. Epa! O Lechuga, meu Diretor de Operação. Com o Diretor Administrativo, o Ochove. Saí de banda, olhando proutro lado. Tentei passar batido. Não deu. Puxaram uma cadeira. “Sentaí, cara!” Sentei.
Dez anos. Isso tudo? Lembro como se fosse hoje. Todo mundo animadaço. Garrafa de uísque pelo meio. Filé a palito. Umas fritinhas. Meia dúzia de cervejas vazias. Fumaceira danada. Do lado do Ochove, uma secretária da diretoria de engenharia que eu conhecia de vista. Cumprimentei. Com Lechuga, uma garota de cabelos pretos, boca bonita, olhos expressivos. Pedi gelo, mais cerveja. Detonei uma dose do uísque e preparei-me para ir à caça (dois casais na mesa, eu sozinho, não ia dar jogo). Fui à luta.
Sou um predador nato, dizem – e reconheço que sou –, mas a noite tava ruim; dancei um pouco, cantei uma e outra, dancei de novo, acabei voltando.
Lechuga bebinho. Levantava a saia da garota, mostrando suas coxas (realmente, algo que merecia ser mostrado), ela tentava sorrir, baixava a barra, deitava o rosto no seu peito. Ele ria desbragadamente (de onde será que vem essa expressão, desbragadamente? Será mais educado rir bragadamente?). Quando ela afastou a cadeira para ir ao banheiro, levantou-lhe de novo a saia e passou a mão na bunda dela. Na volta, logo que ela se sentou, puxou-a violentamente, abriu o decote, botou-lhe o seio pra fora e me mostrou: lindo, hein? Não obtendo resposta, riu, olhou pra lugar nenhum, colocou a palma da mão por baixo dele e fez um biquinho debochado com a boca, ameaçando mamar. Eu estava achando aquilo de terrível mau gosto. Fechei a cara. Humilhante, para quem quer que fosse. Ela notou minha irritação. Levantei-me e fui dar uma andadinha. Afinal, nem a conhecia. Vai ver que estava acostumada com aquilo.
Voltei. Sentei de novo. Observei-a. Não me olhou nos olhos: a coisa estava se tornando pessoal. Lechuga ria, dando socos na mesa. Perguntei a ela se gostava daquilo. Com o cotovelo apoiado no tampo da mesa e a palma da mão no queixo não respondeu, e olhou para o lado. Baixou então a cabeça: polegar e quatro dedos entreabertos entre a testa e o rosto. Inclinei-me um pouco e olhei-a nos olhos. Estava chorando. Perguntei se queria dançar. Movimentou discretamente as sobrancelhas em direção a Lechuga, como quem diz: resolve aí. Falei: “vou dar uma dançadinha com ela”. Não sei se ouviu, nem se respondeu…
Recordo o perfume: pêssego. Assim também era a pele. E a música: “Que será de ti” (Moacir Franco? Trio Irakitan?), maneiroso e sentido como deve ser um bolero que se preze. Seus braços macios me enlaçaram os ombros. Mais próximo, constatei que ela era assombrosamente bela. Os cabelos pretos, num coque frouxo, emolduravam um rosto tenro, com penugens leves se aproximando da orelha, lábios carnudos, prontos pra beijar. Não era alta, um corpo cheio, proporcional, sinuoso, que ao colear o bolero se aconchegava escaldante ao longo do meu.
A orquestra barbarizando. Seguido ao plangente solo de violão, o paraguaio-milonguero vinha pela pista, olhos semicerrados, microfone às mãos:
“Que será de ti,
Quando a ilusão
Em teu coração
For chegando ao fim,
Que sintas que a vida
Então ao passar
Deixa em ti a angústia de compreender
Que sem esta fé que nos dá o amor
Nada pode ser…”
Seu rosto se me achegou ao peito, os olhos se cerraram e os dedos vieram deslizando pelo meu pescoço. Uma ternura imensa me inundou. Vontade que aqueles olhos escuros, expressivos, só se abrissem para me olhar, que a boca linda, rôndea, vermelha, brilhante, só existisse pra me beijar, que aquela calcinha saliente, sedosa, que se apertava contra o meu e o seu corpo, guardasse segredos apenas nossos.
E o guarani-argentino, caminhando entre os casais, seguia abraçado ao microfone, maltratando esse meu coração vagabundo:
“Que será de ti,
Sem os beijos meus
Sem os meus abraços
Que só foram teus
Meu carinho fiel
Te acompanhará
Com as amarguras que ficarão
E com o perdão do meu coração
Acharás a paz.”
Senti que sua respiração acompanhava a aceleração entrecortada do meu coração, ameaçando saltar do peito. Perdi a noção do tempo. Fechei os olhos com medo de acordar fora de seus braços. Fui abrindo devagarinho com meu rosto roçando sua pele macia e deparei-me com sua boca bem próxima, olhos úmidos de volúpia…
Como que magnetizados um pelo outro, nossos lábios se aproximaram, se encaixaram, e o mundo deixou de existir. Apertou-me com tanta força que minha respiração quase também se foi. Mas, respirar pra quê? Desconfio que estava fazendo o mesmo com ela. Parecíamos duas pessoas se afogando, em que uma via na outra a única possibilidade de salvação.
E a canção…
“Falarão de mim
Todos os caminhos
que percorremos
Relembrando-te as horas
que ali vivemos
E sentirás a saudade do meu querer
Ansiando volte o amor que não pode ser.”
E a harpa paraguaia entrou em cena, espraiando pelo salão as ondas de seu som divinal, só pra nós.
Vocês já se apaixonaram ao som da harpa paraguaia? Parece incrível, mas dela emana o amor romântico, irrefletido, ardente, visceral, profundo, sofrido, final.
Madrugada. O Balneário ficando vazio. Lechuga dormia na mesa. Ochove e a secretária não estavam à vista. Saímos.
Fomos para sua casa. Num morro com umas casinhas simples, não muito longe do centro da cidade. Chamava-se Pico do Amor. Hoje não tem mais esse nome. Mudou para um nome de santo ou de político, não tenho certeza.
[Alguns anos depois, quando voltei a Cuiabá, procurei afastar-me de quaisquer lembranças ligadas ao local. Evitava até pensar no morro. Algum desavisado é que me informava, descuidado: “Estou comprando uma casa no Jardim Santa…, São…, Dr. …. Bairro nobre, sabe? É onde era o Pico do Amor, lembra?…” (Claro que sim. Ali morava minha princesa. Com a mãe, mais seus três irmãos menores. Como esquecer?)]Encostei o carro meio que de lado, travei a roda com uma pedra e fomos namorar, no sentido clássico do termo. Pegou duas cadeiras, trouxe pra fora da casa e ficamos no alpendre, olhando a lua, que dali nos aparecia sem disfarces, gorda, grandona, frouxamente pendurada na soleira de nosso amor.
Naquele tempo, as principais empresas estatais do Mato Grosso eram a Cemat e a Sanemat; uma, de energia elétrica, a outra, de saneamento. Os diretores de ambas eram nomeados pelo governador do estado, e existia uma espécie de convênio entre eles: um empregava as pessoas indicadas pelo outro. Assim é que Rebeca – esse seu nome – Aprile González (maravilhosa contribuição ítalo-espanhola para materializar sonhos tropicais), indicada por Lechuga para a Sanemat, tinha cumprido sua compulsória missão de sair com ele, servi-lo no necessário: para isto recebera o emprego…
Bem, ignorando essas prerrogativas, entregamo-nos a uma paixão desbragada (esse Braga deve ter sido um saco!) que durou eternamente (bem, para ser mais preciso, eternidade de quase três meses).
Fomos despedidos, eu da Cemat, sem receber quaisquer explicações, ela, da Sanemat, com metade das que recebi.
Passamos nosso mês de aviso prévio de cama. Literalmente. Durante esse tempo, a gente nem se lembrou desse negócio de emprego.
Dizem que na vida, sempre que uma porta se fecha, abre-se uma janela, e que é das janelas abertas que o céu é mais lindo e a terra “mais grande”. Pois é. Mudei de estado (da Federação) e fui trabalhar no Rio. Rebeca arrumou logo outro emprego. Para mim não foi surpresa. Tinha um “talento natural” impossível de passar despercebido aos entrevistadores (como dizia uma amiga minha, “conheço o talento de um homem pelo tamanho dos pés…”).
Nosso amor eterno, longe da harpa paraguaia, foi perdendo nitidez (como dizia uma música italiana da época, “lontano dagli occhi, lontano dal cuore.”). E contornos cambiantes. Uma vez ligou, uns dois meses depois de minha partida. Disse estar grávida (parecia feliz com essa tragédia). Perguntei-lhe se tinha certeza. Falou que quase absoluta. Desliguei, acalentando o secreto desejo de que fosse rebate falso. Roído de dúvidas: “será que foi de mim? Ela saía com Deus e o povo…”
Involuntariamente, ia recebendo notícias pelos colegas que ficaram em Cuiabá.
Tá grávida.
Nasceu.
É menina.
Tinha seu telefone, mas não liguei; afinal, passou-se tanto tempo que seu telefone deve ter mudado… Mas um dia os companheiros de trabalho disseram-me que ela havia ligado e deixado um número. Fiquei apreensivo. Será que ia querer pensão alimentícia? Reconhecimento de paternidade?
Eu aprendera, em Administração Pública, o conceito de “custo da transação”. Quando o governo quer aplicar um tributo ilegal ou ilegítimo, age de forma a dificultar todas as ações do prejudicado, fazendo-o percorrer tantas instâncias judiciárias, e de tal forma onerosas, que fique desestimulado a prosseguir nas ações iniciadas. Além disso, essa dificuldade serve para desencorajar a pretensão de outros possíveis litigantes, e, assim, o governante atinge seus desígnios. Instruí os colegas a não receberem seus recados, a não informarem onde eu estava, nem quando chegaria das inventadas viagens. Não foi preciso muito. O custo da transação era muito elevado para ela, principalmente em termos emocionais. Ao pressentir que meu amor tinha morrido e que eu não mostrava mesmo um mínimo de consideração, desistiu.
Nunca mais ligou. Nunca mais a vi.
Só agora, no aeroporto.
Fiquei olhando seu nome escrito no vidro. Os três se afastaram, de mãos dadas, correndo em direção à aeronave: a menina no meio, o gringo à frente, à direita, arrastando as duas.
Rebeca olhou para trás. Gritei seu nome, esboçando um tímido aceno de adeus. Ela abanou as mãos vivamente. Doloroso, mas pareceu-me tomada da doce alegria que acompanha o enterro do amor: uma energia luminosa vagando no ar, um sorriso feliz. O casual encontro fora a catarse definitiva para espalhar a paz no seu coração. E tumulto no meu.
Desorientado, não sei quanto tempo fiquei a olhar seu nome gravado na transparência de minh’alma. Dez anos. É pouco para consumir a chama. Ou nada, para os que verdadeiramente amam.
As lágrimas explodiram, infiéis, inexoráveis. Tentei passar despercebido das pessoas. Coloquei as mãos espalmadas sobre a testa para disfarçar o choro convulso que me possuiu. Mas aquele meu tamanhão, as tranças rasta acompanhando os soluços, trouxeram-me a atenção e a simpatia dos espectadores. O cara de uma companhia azul-turquesa, solícito: “perdeu o voo, senhor?” “Senhor é o caralho!”, resmunguei. E fui andando.
Evidentemente, perdi meu voo. E um pedaço de mim, que se foi nas asas da saudade. Ah, Rebeca… Por que me legaste todo o peso dessa dor?
Apreendi ali, em profundidade, a doce amargura dos versos de Quintana:
“Da primeira vez que me assassinaram
Perdi um jeito de sorrir que eu tinha
Depois, de cada vez que me mataram
Foram levando alguma coisa minha.”
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