Em nosso texto anterior, na Parte I – O Penhor da desigualdade, defendemos a ideia de que o Brasil ainda não possui os requisitos básicos para que possa ser considerado uma Nação; e, por conseqüência, não se pode dizer que é um Estado, no pleno sentido da palavra.
O que possui, no máximo, é um grupo de nacionalidades, com um idioma comum, convivendo conflituosamente em território soberano.
As nacionalidades branca e amarela, na confortável posição que ocupam no cenário socioeconômico e nas estruturas de poder do País, afirmam que existe uma cultura nacional e que os brasileiros compartilham um caráter cordial, tolerante e pacífico, no que são contestadas pelas nacionalidades negra e indígena que, inconformadas com as próprias condições de vida (e de morte), buscam formas de reverter a situação.
Para a nacionalidade negra, quantitativamente majoritária, já se apresentam as condições subjetivas e objetivas necessárias para emergir efetivamente como maioria política, uma vez que:
Tal afirmação se justifica, principalmente, pelas seguintes considerações:
1) No Brasil, há negros em todas as cidades e em praticamente todos os campos do conhecimento;
2) Sua identificação com outro negro é mais imediata do que entre maçons, judeus, marxistas, pobres, ricos e outras marcas contingentes, já que um negro não pode ser outra coisa no gênero. O nariz chato e largo, os lábios grossos, a pele parda ou preta e os cabelos crespos revelam-no permanentemente para si e para os outros.
3) Por outro lado, se é que pode sentir-se inferiorizado pelo fato de conviver em conflito com outras nacionalidades num ambiente em que muitas vezes se encontra em desvantagem, isto lhe é tão problemático quanto para qualquer outra nacionalidade. Assim, uma pessoa fenotipicamente branca nacional poderia desejar ser, por vários motivos, branca caucasiana, indígena, amarela ou… negra. Ou uma pessoa indígena querer ser considerada amarela. Ou um branco caucasiano buscar ser branco nacional.
4) Grupos hostilizados por possuírem características identitárias comuns das quais não querem ou não podem abrir mão acabam por ter aguçada sua sensação de pertencimento, aumentando e qualificando a coesão grupal. A opressão sofrida acaba servindo como elemento de aglutinação. Permanecem juntos, na alegria ou na tristeza. Afinal, a dor dividida é menos sentida que a dor solitária. E o prazer, compartilhado, é maior.
Contrariamente, por ser doloroso qualquer processo de exclusão, há pessoas que procuram mudar de grupo ou que, mesmo sem o explicitar claramente, sentem-se mais identificadas com o grupo inimigo. Neste caso, as defecções, que são de difícil quantificação, podem ocorrer para qualquer lado. Não são privilégio de uma nacionalidade específica.
Quanto à questão da consciência racial, inclusive em seus aspectos práticos de autoaceitação e militância, à medida que os conflitos vão se exacerbando as pessoas vão assumindo posicionamentos mais definidos e proativos, integrando-se à luta entre nacionalidades na intensidade e áreas de atividade em que se sentem mais dentro de sua zona de conforto.
Importa observar que, no Brasil, há descendentes dos africanos escravizados que apresentam pele clara, cabelos lisos e outras características que os fazem ser assumidos pela sociedade em geral como brancos nacionais. Em situações de conflito, costumam optar pelo pertencimento à nacionalidade com a qual mais se identificam, assumindo ou não sua cultura/ideologia.
Pode ser aplicável ao Brasil a Lei do desenvolvimento combinado, que procura explicar o sucesso da Revolução Comunista de 1917, num país atrasado como a Rússia do início do século XX, deteriorada política e economicamente pela participação na primeira Grande Guerra, com seu campesinato ainda em estágio de servidão e um parlamento refém do Czar. Além disso, liderada pelo partido bolchevique, composto por um proletariado oriundo de parques industriais incipientes e politicamente menos avançado que seus congêneres da Europa Central. Ah, e com seus ideólogos e dirigentes políticos todos presos ou banidos.
Essa lei postula que, numa situação de desenvolvimento nacional descontínuo, quer seja internamente, quer seja em comparação com países mais adiantados, o avanço de uma revolução não precisa, necessariamente, passar pelos vários estágios evolutivos por que passaram as nações mais adiantadas ou os estratos nacionais mais desenvolvidos.
Há, em tal caso, a aproximação das diversas etapas de desenvolvimento, a combinação de fases de consciência política diferenciadas e a junção de formas arcaicas de luta com as mais modernas.
Segundo ela, o privilégio moderno de se viver numa situação atrasada autoriza, ou melhor, força um povo a assimilar antes do prazo previsto todo o conhecimento acumulado no seu entorno, passando por cima de uma série de etapas intermediárias. Isto é, passa-se do arco e flecha diretamente aos fuzis a laser, da luz solar às microondas, do tacape às armas de eletrochoque, do 14-Bis ao drone…
E, a partir da contínua difusão dos meios de comunicação, ninguém mais pode alegar desconhecimento do que ocorre em sua casa, na sua cidade, em seu país e no mundo.
Paradoxalmente, a separação dos africanos escravizados de seus grupos linguísticos e culturais logo que chegados ao Brasil e sua redistribuição pelo País trouxeram, para os dias de hoje, resultados não previstos pelos escravizadores. Longe de reduzirem as possibilidades de rebelião propiciaram, ao contrário, a disseminação de variadas expressões culturais e evitaram o surgimento de culturas negras hegemônicas em qualquer das regiões.
Ou seja, nós negros somos, aqui, uma nacionalidade razoavelmente homogênea, com profícua diversidade cultural, que permitirá ao povo brasileiro afastar-se de padrões reacionários de arte e cultura, transformando-as em algo revolucionário, criativo e efetivamente popular.
E no Brasil, que tem sido chamado de Belíndia, por reunir simultaneamente, num mesmo território, populações com indicadores socioeconômicos característicos das positividades da Bélgica e das negatividades da Índia, esta mesma descontinuidade pode contribuir para acelerar o processo de emancipação de todas as suas nacionalidades oprimidas.
É inadiável a solução de problemas como educação precária, transporte inviável, falta de saneamento básico e as doenças endêmicas resultantes, apropriação fraudulenta de terras, desvios no setor público e privado, prioridades indevidas nos gastos públicos e o extermínio genocida e etnocida de grandes contingentes das nacionalidades indígena e negra.
Evidentemente, tal situação de desigualdade deve ser creditada aos detentores do poder — principalmente a integrantes das nacionalidades branca nacional, branca caucasiana e a seus ascendentes —, já que não há uma entidade divina a quem se possa atribuir objetivamente tal responsabilidade. A nacionalidade amarela não se manifesta, o que corresponde a seu silencioso aval para a continuidade desse rosário de iniquidades.
O racismo entranhado na sociedade brasileira vem acarretando danos psicológicos de natureza social e individual, inviabilizando a qualificação e retirando do mercado um significativo número de pessoas capazes. Sua erradicação, além dos aspectos de legitimidade e de solidariedade humana envolvidos, proporcionará, entre outros ganhos, redução do custo Brasil e aumento da produtividade em geral, com vantagens competitivas para a possível nação superveniente.
Por outro lado, importa alertar que um Estado que se mostra incompetente para atender às necessidades de suas diferentes nacionalidades condena-se a si mesmo. O Estado que não gera um processo de inclusão plena para todos fica desprovido de sua base de autogestão
Há perspectivas para que se reverta a situação, de se conduzir o Brasil ao status de verdadeira nação, e de se mudar a forma de organização do Estado?
Sim.
Um elemento que permeia toda a questão da nacionalidade é a territorialidade. Desde a antiguidade, há uma luta internacional pela ocupação de territórios, interna e externamente às nações.
Em nenhum dos continentes do planeta a situação está plenamente resolvida, mas nota-se que nos estados-nação de formação mais antiga (de 1000 anos para trás), há uma relativa estabilização nas lutas intranacionais por território, a despeito de alguns abalos que acontecem de tempos em tempos.
No Brasil, infelizmente, estamos num estágio neofeudal.
Assim como a lepra, a tuberculose, a malária, a doença de Chagas e outras epidemias decorrentes da precariedade do saneamento básico, bem como os desabamentos em áreas habitadas, as inundações e os desastres ambientais, há muito eliminados ou drasticamente reduzidos nos países centrais, a questão da posse ou propriedade de territórios encontra-se aqui como estava na Idade Média europeia.
Convivendo com bolsões de modernidade, a luta por territórios nas várias regiões do País vem assumindo contornos semelhantes à da época de Ivan, o Terrível, nos primórdios do czarismo, no século XVI.
A desterritorialização das nacionalidades oprimidas, há séculos iniciada pelos portugueses, continua nos dias de hoje
Os grandes proprietários de terra e empresários do agronegócio pertencem a uma casta que manipula permanentemente o poder político central, os órgãos de meio-ambiente estaduais e municipais e o aparato policial-militar das três esferas do governo republicano. As tradicionais oligarquias e o macroempresariado urbano, numa relação mais do que promíscua, apoderam-se de todos os espaços, públicos e privados, para canalizarem para si e para amigos e parentes os ganhos nas áreas de construção civil, indústria, comércio, extração de recursos minerais, serviços e exploração cartorial, entre outros.
Do lado oposto, os indígenas, originais donos da terra, e os quilombolas das áreas rural e urbana, aliados aos habitantes das favelas, mocambos e palafitas lutam desesperadamente pela propriedade das terras, prédios e benfeitorias em locais que já ocupam há anos.
Acobertados por agentes públicos corrompidos, especuladores lançam-se ferozmente sobre tais áreas, com todo o apoio do aparato jurídico e policial-militar tradicionalmente a seu (deles) serviço.
Por incrível que pareça, um espectro medieval se debruça, ainda hoje, sobre essas populações marginalizadas: o caldeirão de turbulência da luta por territórios.
A união dos vários estratos da sociedade brasileira nas atividades para aprovação do Projeto de Lei de Iniciativa Popular – PLIP, estabelecendo a reparação aos descendentes de povos africanos escravizados no Brasil pelos crimes de tráfico, comercialização e subjugação a trabalho escravo, apesar de importante e urgente, não resolve a questão. O valor de cerca de 8 trilhões de reais, exigido pelos negros como reparação, não serão suficientes para modificar substancialmente a correlação de forças que envolve as nacionalidades.
Servirá apenas de paliativo para seus beneficiários imediatos, os descendentes de povos africanos escravizados que vivem em condições precárias.
Assim como a aplicação local dos recursos pecuniários, na forma definida pelas comunidades, a reparação abrange também a questão da efetivação da propriedade dos territórios atualmente ocupados e outros a que tenham direito, devidamente urbanizados pelo poder público, não descartadas as eventuais permutas que se fizerem necessárias.
Mas, o mais importante dessa luta é que, ao agregar negros de todo o país e das mais diferentes tendências, permite a formação efetiva de uma organização política, encabeçada pela nacionalidade negra, nos moldes das organizações internacionais mais modernas, dado o estágio de desenvolvimento em que se encontra o Pais.
Como dizia o técnico-filósofo Vanderlei Luxemburgo quando uma equipe de futebol por ele treinada conquistava um título: “Nada resiste ao trabalho!”.
Então, vamos ao trabalho.
Os negros, apesar de todas as vicissitudes, já correspondem a 53% da população brasileira, porcentual que deve aumentar nos próximos anos, já que possuem uma taxa de fecundidade superior à das outras nacionalidades. Assim, o País, em função de tais indicadores e das uniões multirraciais, está mais sujeito à negrização dos brancos do que à branquização dos negros.
É ingenuidade alguém acreditar que estes milhões de brasileiros, conscientes da situação de desvantagem em que se encontram, não irão se organizar politicamente para reverter o quadro. É mera questão de tempo e de eficiência metodológica.
Os negros que, mesmo no âmbito de uma sociedade racista e preconceituosa, conseguiram obter êxito em nível individual, conscientizam-se cada vez mais de que só a vitória do conjunto trará ganhos significativos para o próprio grupo e para uma eventual composição de nacionalidades disposta a implementar um verdadeiro projeto de nação. Como diz o slogan publicitário: “a vitória não é de ninguém se não for de todos”.
O engajamento desse precioso e diversificado elenco de especialistas em uma luta política consequente permitirá que, mesmo com alguma divergência na forma e no viés ideológico, se altere substancialmente a correlação de forças no cenário político nacional.
Entretanto, mesmo a presença de tão poderoso conjunto de pessoas precisa incorporar ao processo novos elementos, necessários para uma ação efetiva e eficaz.
O saber acadêmico, a arte, a cultura, a aceitação social, a inserção qualificada no mundo político das nacionalidades hegemônicas ou no mercado de trabalho, e mesmo as denúncias e inquéritos policiais não podem agir como substitutos de demandas políticas articuladas e objetivas.
A hora é esta!
Yedo Ferreira, intelectual orgânico, em recente exposição visando à construção de uma organização política do povo negro, afirma que as pessoas passam, no mínimo, por três estágios na preparação para uma luta política (contra o racismo, por exemplo):
a) Estágio da Percepção Sensível — A pessoa percebe o racismo e sofre, mas não consegue estabelecer uma forma estruturada de ação contra ele (sai para a briga, reclama, fica deprimida, paralisada, etc.).
Nesse estágio, a pessoa é vítima de um sofrimento sem fim, impotente para confrontá-lo.
b) Estágio da Percepção Racional — O racismo é percebido e a pessoa adota estratégias individuais de sobrevivência (adere aos ideais de branqueamento, procura se afastar dos racistas ou fingir que não está sendo discriminado, busca exercer atividades em que não haja confronto, etc.).
Em geral, reage momentaneamente ao racismo, mas logo em seguida procura afastar-se da área de conflito ou tenta esquecer o assunto.
c) Estágio da Percepção Lógica A pessoa desenvolve uma crítica lógica à ideologia de dominação colocada em prática pelo opressor e busca refutá-la individualmente ou se associar a outras pessoas para compartilhar ideias.
É onde ela monta uma estratégia sistematizada para implementar ações políticas em conjunto com outros oprimidos.
Ainda segundo Yedo, o ciclo da luta contra o racismo apresenta os seguintes agentes e configuração:
PND ————> PNM < ------------> PPA
Sendo:
PND — População Negra (Politicamente) Desmobilizada
PNM — População Negra (Politicamente) Mobilizada
PPA — População Politicamente Ativa (dentro da sociedade em geral).
Para que se passe de um estágio a outro, politicamente superior, é necessário, que busquemos na História, na tradição e na cultura os elementos fecundadores da transformação pretendida.
Mas não que permaneçamos imobilizados por eles, como filhos presos indefinidamente aos liames maternos.
Mesmo que necessitemos, para essa ruptura, de uma drástica transmutação em nossas vidas. Talvez dolorosa…
É necessário suplantar a ligação ancestral com a mãe África para a viabilização do projeto de uma verdadeira nação brasileira.
É fundamental que cada negro reúna suas energias, eleve o pensamento aos céus e brade convictamente: “Cauterizai o meu umbigo!”.
Eustáquio Lawa. Março de 2016.
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