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Diários de Havana I (4)

(4)
Tânia Rum

Fomos à casa de Tânia. Eu e Vitória. Beco com umas trepadeirinhas floridas, puxado na lateral do caminho e varanda com vasinhos de violeta e samambaias anãs. Do lado de dentro, balcão com garrafinhas, uma balança e dois garrafões. Romélio se referira a ela, cavilosamente, como uma marginal periférica (nunca vi marginal central…). Bem, a observação podia até ter sua lógica, mas, depois que a conheci, achei que ele forçara a barra. Atendeu-nos sorridente, daquelas satisfações que você sente de imediato que são sinceras. Nos aboletamos no sofá. “Un traguito?” – “Rum? Cerveja?” Rum tinha; cerveja a sobrinha dela saiu pra comprar.. Preparou para mim uma dose de rum com laranjada (na verdade, Fanta ou Tampico). Para si a mesma coisa, mas com uma quantidade cavalar de rum. Vitória era mais de cerveja. Tinha Tânia uma pele clara, ressecada, já passando de uns quarenta bem castigados. Mas depois descobri que ela, apesar de apanhar da vida, também lhe dava boas chineladas.

Toda hora chegava um vizinho, com uma garrafinha. No começo, ela só trocava a garrafinha e recebia o dinheiro, uns 10 pesos cubanos (pouco menos que meio dólar americano). Quando acabou o estoque, pediu licença e, com a ajuda de um garrafão de rum e outro de água, vinha, pesava, dava uma provada, acrescentava mais água ou rum e tampava a garrafinha. Bem, entendi que vendia rum falsificado. Falsificado, não, batizado, vamos dizer assim.

Professora de primeiro grau, só trabalhava às terças e quintas. Para reduzir o desemprego, o governo tinha flexibilizado o horário dos profissionais de ensino. A mesma turma era atendida por outro profissional que trabalhava às segundas e quartas. Um terceiro – professor de educação física, xadrez, dança, música, ecologia ou outra coisa – só trabalhava um dia por semana. É claro que o salário também estava flexibilizado, e tinham que se virar. Descobri logo em seguida que ela também locava vídeo. Me mostrou um quarto com fitas penduradas de cima abaixo pelas prateleiras. Tudo pirata. E bem malhadas. À medida que um título parava de sair, ela gravava em cima. Bem, não era ela quem gravava; funcionava mais como atravessadora. Mas a fita que Vitória queria me emprestar, 90 milhas, tinha umas três cópias.

Esse 90 milhas era um filme tenebroso, meio ficção, meio documentário, sobre uma família cubana – marido, mulher, irmão, mãe, cunhada, avó, filhos – que tenta cruzar o oceano, rumo aos Estados Unidos, numa balsa feita de câmaras de ar de automóvel. Depois de sofrerem muita fome e sede – o penúltimo sobrevivente chega a se alimentar mamando no peito da mulher morta –, morre quase todo mundo; só sobra uma criancinha de uns três meses de vida. É de desencorajar qualquer um a se arriscar na travessia.

Chegou o namorado de Tânia, um sujeito muito bem-humorado, com cara de safado e bon vivant. Tomava rum puro e fumava que nem uma chaminé. Acho que a Tânia banca ele. Em Havana ainda tem muito desses caras, parecendo personagem de tango argentino. Falou que o marido de Tânia não gostava muito dele, não. Nem era para gostar, era? Contou que Tânia, ainda não oficialmente com ele, incentivou o ex a levá-la ao Cassino Tropicana, caro pra caralho! O cara levou-a, com todo o resto da família – mãe, irmã, cunhado – e Tânia bebeu até a tampa. No final do show, depois de ter dançado com todo mundo, subido no palco e abraçado e beijado os artistas, desceu e ficou saracoteando em cima da mesa, remexendo as anquinhas. O ex ficou puto, mas aguentou, na esperança de reatar. Aí, no caminho de casa, ela disse que era a última vez que se viam, já tinha outro no pedaço, e fim. O cara quase teve um infarto.

Mas ela era mesmo da pá virada. Perguntou se eu sabia como acabaria a novela Senhora do Destino. Confundi com Porto dos Milagres, uma que tinha o Marcos Palmeira como pescador e ela não entendeu nada do que eu disse que seria o final. Aí então subiu no telhado e virou a antena parabólica pro lado da Venezuela (ou México, sei lá), onde a novela já estava mais adiantada e, por entre areia e chuviscos, chegou à sua própria conclusão.

Aliás, quanto a esse negócio de novela brasileira, na próxima vez que eu vier a Cuba vou assistir todas antes. Eles se amarram. Todo mundo assiste. Teve uma novela, com a Regina Duarte, penso, que tinha um restaurante caseiro chamado Paladar. Não é que se criou aqui em Cuba um tipo de restaurante familiar, com poucas mesas, de comida barata, chamado genericamente de Paladar? Foi institucionalizado. Hoje estão meio em baixa, já que com as dificuldades no abastecimento mesmo seus preços ficaram acima da capacidade de pagamento dos cubanos.

A gente foi ficando bêbada. Botamos umas músicas, comi aqueles pedações de presunto com soja (ótimos pra me aumentar a pressão), apareceram a mãe de Tânia, da fuzarca, igual à filha (também, com o nome de Caridad…), e um viado meloso, meio fora do mercado, muito espirituoso, que bebia, bebia e nada de apagar. Finalmente, todos nos abraçamos carinhosamente (bem, eu e Tânia um pouco mais do que rezava o protocolo) e fomos embora. Eu e Vitória. Encaixei-me o mais respeitosamente possível por trás da sua bunda; a Vespa deu umas guinadas meio esquisitas e saímos alegres pelo trânsito confuso de Víbora. Depois de muitos xingamentos dos motoristas que se encontravam sóbrios (pelo menos, presumo que estavam), ela me deixou no ap do Livan. Entreguei-lhe a garrafa de rum que Tânia enviou, que ele guardou, depois de resmungar que aquela merda só depois que seu estoque chegasse ao final e num horário que não tivesse nenhum lugar aberto pra comprar bebida…. Bem, como não estava em condições de contestar, subi para o quarto e apaguei.

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