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Diários de Havana I (8)

(8)

Victória

 

 

Quando falei ao Mário que pretendia ir a Cuba e andava meio enrolado, sem saber por onde começar, disse-me que era imprescindível contactar Vitória. Deu-me o e-mail e imediatamente as coisas passaram a rodar legal. Literalmente.

Casada com Romélio, mãe de Ingris, economista do INIE – Instituto Nacional de Investigaciones Económicas, tinha conhecido Mário num congresso de economia em Havana, onde fizeram boa amizade (alicerçada em Keynes, Ricardo, Schumpeter e outros, mas, enfim, como diz Milton, toda maneira de amar vale a pena…). À primeira vista, parecia ser uma crítica severa do regime cubano, mas, quando se a conhecia melhor, verificava-se que só ela podia criticar. Se você criticava, fechava a cara e a conversa empacava. Na verdade, admirava e tinha orgulho de seu povo, apesar de viver reclamando das dificuldades materiais. Quando a gente tomava umas e ela ficava meio nostálgica, dizia “é amargo, mas é o nosso vinho…”. Eu ficava balançado.

Tinha tipo assim uma Vespa, recondicionada, pretensamente de dois lugares (eu tinha minhas dúvidas e Mário definitivamente achava que não dava prum carona) com a qual rodamos Havana de cabo a rabo. Às vezes tomávamos umas e, ziguezagueando entre os carros, não sei como não fomos detonados ou pelos taxistas apressados ou pelas ruas esburacadas. Enfim, acho que Deus, apesar das rejeições revolucionárias, é cubano também.

Queria que eu visitasse todos os museus de Cuba, o que, pelo meu tempo disponível, era impossível. Sorte que o Museu Africano em reforma, o das Américas (patrocinado pela República Bolivariana das Américas – quer dizer, Hugo Chávez), sob inventário e o do Chocolate com uns horários de funcionamento algo esquisitos me forneceram habeas corpus, mas para o de Belas Artes não houve desculpas, e ela ficou injuriada. Na próxima visita  a Cuba, visitá-lo-ei.

Quanto à nossa divergência em relação às questões raciais (ela achava que, em Cuba, não eram relevantes), foi democrática: levou-me para conversar com Pablo, estudioso do assunto, seu colega de Universidade, do qual igualmente discordava. Assim, por alguma lógica não-aristotélica, entendeu que eu e Pablo teríamos entendimento convergente sobre o tema. O que não era verdade absoluta, como veríamos depois.

Tivemos outros tipos de atrito, mais amenos. Por exemplo, Nosotros. Quando estou em paz com o mundo, tenho mania de fazer parceria com grandes compositores, e, além de inverter versos e estrofes, chego a inserir partes de uma música em outra. Tudo numa boa. Vitória ficava invocada. Quando eu, na garupa da moto, cantarolava “Nosotros, que fuimos tan sinceros, debemos separarnos, no me preguntes más…”, me corrigia irritada “Nosotros, que fuimos tan sinceros, que desde que nos vimos, amandonos estamos…” Depois eu vinha: “No es falta de cariño, te juro que te adoro…” Me interrompia de forma definitiva: “No es falta de cariño, te quiero com el alma, te juro que te adoro y en nombre deste amor y por tu bien, te digo adiós”. Eu morria de rir. A graça estava em subverter.

Problema mesmo foi com a garupa daquela moto. Na porta de sua casa, ao sair, com muito rum na cabeça, tentei sentar a uma prudente distância de acoplamento, mas seu marido veio preocupado e me botou mais pra frente, com medo que eu caísse. Bem, houve momentos que pensei em usar táxi, já que o calor de suas costas e o leve perfume de seus cabelos poderiam perturbar nosso relacionamento. Mas optei mesmo pela Vespa e tudo chegou a bom termo.

Foi de uma disponibilidade a toda prova. Logo que cheguei a Havana, encaminhou-me à casa-hospedaria de Livan, negociando com ele um preço mais acessível. Indicou-me os pontos imperdíveis da cidade e prontificou-se a levar-me até eles. Como não se interessava por pesca ou xadrez, demoramos a descobrir onde ficava a Marina Hemingway e o Clube de Xadrez, o que atrapalhou minha pesca do marlin e adiou meu confronto com os mestres cubanos. Talvez, agora, só no meu retorno a Cuba é que fá-los-ei tremer (sem trocadilho, hehehe…).

Gostava mesmo era de sorvete. Seu fraco, confessava. No dia mais crítico do furacão, com a ressaca invadindo o malecón, sem energia elétrica na cidade – só os geradores de emergência dos hotéis –, convidei-a para jantar. Fomos a um hotel cinco estrelas no Paseo Del Prado e eu, pra fazer presença, pedi um prato cheio de sacanagem sem olhar o preço. Na sobremesa, ela viu um sorvete desses (para ela) imperdíveis. Quando veio a conta, quase caí de costas. O sorvete custava mais que o prato principal. Mas valeu a pena, ver sua carinha feliz ao cair de boca em cima daquela montanha de gelo e chocolate.

Fomos a uma praça onde tinha uma estátua do John Lennon sentado num banco. Sentamo-nos e tiramos fotos com a mão nos ombros do Beatle. Ficou gozado. Pareciam um casal amoroso, mesmo com certo ar blasé do britânico. Nunca fui muito favorável a encher a bola de mitos judaico-cristãos. Mas às vezes é até justificável. Hoje, vendo-a na foto, acho aquilo de uma certa pureza, tipicamente cubana.

Seu pai, carinhosamente chamado de Pipo, foi (é) um revolucionário de primeira linha. Aposentado, às voltas com o fatídico racionamento, dificilmente se pode vê-lo reclamando do governo. Acho que lutou contra Batista, talvez até tenha estado em Angola. Mas não fala sobre isto. Nenhum cubano gosta de falar das guerras. Não descobri por quê.

Quando fui almoçar (e fazer almoço) na casa de Vitória, levei pra ele um Añejo (um rum da melhor qualidade). Pegou na garrafa como quem pega numa preciosidade. Mas fez questão de que bebêssemos juntos. Puta que pariu! Detonamos a garrafa. Saí dali até torto. Ele era um cara legal. E por isso tinha uma família tão legal. Sobre a mãe de Vitória, não se falou. Também não sei por quê. Cubano é meio estranho, principalmente no tipo de esqueleto que deixa no armário.

Não sei por onde anda. Talvez no Chile, há muito intercâmbio na área econômica entre os dois países. Vou mandar um e-mail pra ela esta semana. Talvez esteja vindo ao Brasil, quem sabe. Poderei então retribuir parte da preciosa atenção que teve para comigo.

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