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Encontros com pessoas notáveis

Ao longo da minha vida, e lá se vão 66 anos, encontrei algumas pessoas notáveis. Não quero dizer com isto, car@ leitor@, que você também não seja notável. As que apresento a seguir, entretanto, possuem o simples requisito de que, além de me impressionarem pelas várias qualidades que possuem (ou possuíam), qualquer jornalista ficaria feliz de conseguir entrevista exclusiva com qualquer delas. E sempre dariam excelente reportagem.

Os textos não estão na ordem cronológica em relação ao período em que as encontrei. São relatados à medida que as lembranças me chegam. Os encontros são, basicamente, independentes entre si, podendo a leitura ser escolhida aleatoriamente.

1959 Padre Sérgio Palombo, Alcione Araújo (reencontrado em 2003)

1968 Eugênio German

1972 Tamara Taxman

1977 Baden Powell

1978 A ex-amante de Vaduca

1978 Milton Banana

1981 Nailton Santos

1983 Gladys Ibañez

1986 José Cunha

1987 Lélia Gonzalez

1987 Muniz Sodré

1988 Benedita da Silva

1998, 1999 e 2007 Augusto Sherman

2002 Jerônimo Moscardo

2003 Alcione Araújo

1972 – Tamara Taxman

A primeira vez que a CEMAT-Centrais Elétricas Matogrossenses me possibilitou vir a Belo Horizonte a serviço, foi em 1972, quando eu tinha pouco mais de um ano de formado. Poderia ficar na casa de meus familiares, mas a empresa tinha, como credenciado, o Hotel Financial — na época o mais chic da cidade —, onde eu nunca havia entrado, e a curiosidade falou mais alto: fiz a reserva num apê standard, que a diária não era lá essas coisas.

Peguei em um vôo da Sadia (lembram?), Cuiabá-Belo Horizonte, com escala em São Paulo, onde você ficava uma hora ou mais dentro da aeronave, acho que esperando encher.

Estou lá eu sentado na minha poltroninha, lendo minha Playboy, uísque na mesinha, quando entra um mulherão, daquelas de tirar o fôlego. Seu rosto me pareceu familiar. Cumprimentei-a familiarmente (quer dizer, familiarmente, mesmo, não…). Achei que, por incrível que pareça, já a conhecia de algum lugar. Apesar de o avião estar praticamente vazio, ela se sentou do meu lado, pediu seu uísque (naquela época, era boca livre) e, bastante extrovertida, me perguntou de onde vinha. Respondi,  onde ia participar de uma filmagem. Apesar de eu não tirar os olhos de seu corpo, falou que estava com o rosto tão moreno era das praias de Salvador, onde estivera fazendo umas fotos e agora estava indo a BH onde iria participar de uma filmagem. Perguntei se ia para algum hotel. Ela, Financial. Eu, que bom, vamos ficar juntos, quer dizer, junos não, falei encabulado (naquela época eu ainda ficava encabulado). Ela sorriu, condescendente: quem sabe?

Baixei a cabeça e folheei a revista. E descobri de onde vinha a sensação de dejà vu. Lá estava ela, na praia, nua como viera ao mundo. Bem, exatamente como viera ao mundo, não, ali aparecia com mais relevos e reentrâncias do que quando bebê. Um monumento, um rosto lindo, sorriso angelical e diabólico (não eram ambos entes celestes?). Ela brejeira: gostou? Eu sem reservas: e como!

Chegamos a Belô. Pampulha. Centro da cidade. Hotel. Recepção: estão juntos? Ela: estamos, mas quartos separados, por favor.

Desfizemos as malas, fizemos nossos contatos locais e, à noite, subimos para jantar, no restaurante do hotel. Último andar, descortinando o panorama de toda a cidade. Com uma boate anexa.

Uma noite de sonho. Bebemos, jantamos, bebemos, dançamos. Coladinhos. Aquele corpão macio e perfumado pouco a pouco foi amolecendo e, carinhosamente, dormiu em meus braços.

Noite de sonho. De sonho?

Dia seguinte, cedo, não a vi no café da manhã.
Saí para meus compromissos.
Quando voltei, à noite, a recepção informou que já tinha ido.
Procurei por todos os lados qualquer fragmento palpável de lembrança. Nada.
Realmente, uma noite de sonho.

1978 –  Milton Banana

Trabalhava eu, então, em Furnas, ali na Rua Real Grandeza, em Botafogo. Almoçava no bandeijão da empresa e costumava dar uma volta no quarteirão para digerir a gororoba e voltar ao batente. Entrava sempre numa lojinha de discos e fitas da Voluntários, quase na esquina com Sorocaba. O dono já me conhecia e, mesmo sem comprar nada, eu podia ficar ali ouvindo música e consultando as mercadorias.

Num daqueles dias, vi um vinil com o Fernando Mendes na capa. Não conhecia nenhuma música que ele cantasse mas, inadvertidamente, vi uma, “A Desconhecida”. Será aquela que conheço, “…numa tarde tão linda de sol, ela me apareceu…”, lá do início dos 70s? Pedi ao dono pra colocar na vitrola e não deu outra, era a música, única no LP que me interessava.

Até aqui nada demais, né, colega?

Aí, notei que um baixinho de bigode estava me observando detidamente e, quando concretizei a compra, me abordou.

E falou o seguinte. Sou o Milton Banana. O compositor dessa música. Sabia que o Fernando Mendes me deu um tombo e não estou recebendo nada pelos direitos dela? Ele está ganhando rios de dinheiro com sua interpretação e venda de discos, enquanto eu, neres. Sou baterista e estou desempregado. Não, não estou te pedindo nada, não. É só um desabafo. Também toco violão, quer ver? E tirou da capa um violão, que estava na parede encostado, saiu comigo, sentou na porta da lojinha e começou a tocar a música, com o característico solo. E eu sentei com ele. Tocou uma vez, cantando com voz extremamente melodiosa. As pessoas começaram a parar. Aí botaram uma nota de cinco cruzeiros no chão (aquela que tinha um índio, lembram, na época do Sarney?). E outra, e outra. Bom, aí ele repetiu. E foi juntando gente. E mais e mais. E eu juntando a grana, tirando a poeira e guardando pra ele. Tocou a mesma música umas dez vezes. E ganhou uma grana preta. Me agradeceu pra caramba, com se eu tivesse sido o responsável pela bela colheita!

Anos depois soube que fora para o exterior, e que estava bem, tanto financeiramente como em termos do reconhecimento do seu talento. Nem deve se lembrar desse show na calçada

Não foi um encontro legal? Na próxima semana, narro mais um

Se quiser escutar a música que foi executada por ele, clique no link abaixo. Ah, cantada pelo Fernando Mendes (!!).

A Desconhecida

1968 –  Eugênio German

Belo Horizonte, 1968. Eu cursava engenharia elétrica, na UFMG, e pegava ônibus ali na Rua Espírito Santo, quase em frente a Livraria e Papelaria Aliança, que não existe mais. Enquanto esperava, folheava os livros, mesmo que não fosse para comprar. Como gostava de jogar xadrez, ficava olhando as aberturas, os finais de partida e sempre aprendia alguma coisa. Os atendentes nem se aproximavam, porque já sabiam que eu era um cliente pouco promissor.

Certa tarde, quando via um livro, acho que de Flávio Carvalho, campeão brasileiro à época, aproximou-se um baixinho branquinho, rechonchudo, e perguntou-me se curtia mesmo xadrez. Respondi que sim. Perguntou-me de quais jogadores mais gostava. Falei que do Paul Morphy e do Capablanca e saímos conversando. Achei que ele era meio sem-que-fazer ou estava fazendo hora para ir a algum lugar ali por perto. Só sei que ficamos um tempão conversando. Era simpático e parece que conhecia todo tipo de abertura e final de partida. Viu logo que eu era interessado, mas que além de duro não conhecia ninguém do mundo enxadristico.

Convidou-me a freqüentar o Clube de Xadrez. Se quisesse, me apresentava. E mais, poderia me dar aulas, de graça, todas as quartas à tarde, dia que separara para fazer estudos leves. Escreveu seu nome num papelzinho e me deu, com o telefone

Nunca fui ao clube e jamais o vi novamente.

Uma pena. Aquele era Eugênio German, o primeiro mestre internacional brasileiro. Campeão nacional em 1951, várias vezes campeão mineiro, representante continental em torneios internacionais, respeitado por grandes mestres do mundo todo.

German era engenheiro (talvez por isso estivesse circulando por ali), nasceu em Ubá e, segundo dizem, era uma pessoa muito estranha. Não tinha amigos e o xadrez não se encontrava entre seus maiores interesses. Frequentemente desaparecia, principalmente depois de grandes triunfos.

Após o memorável campeonato brasileiro, ganho em 1951, aos 21 anos, com 14 vitórias, dois empates e apenas uma derrota, e o segundo lugar no ano seguinte, ficou sumido por cerca de cinco anos, voltando para conquistar o tricampeonato mineiro de 59, 60 e 61 e desaparecendo de novo.

Nunca se deu a German, no Brasil, o valor que merecia. Morreu em 2001, praticamente no anonimato.

Vejam vocês, perdi a oportunidade de conhecer melhor uma personalidade rara. E que mostrou, sem qualquer tipo de exigência, disposição de compartilhar comigo sua habilidade enxadrística e, acredito, sua rara amizade.

1977 (circa) –  Baden Powell

Num sábado de Carnaval, aí por volta se 1977, saí no Cordão da Bola Preta. Eu e meu primo Gustavo, que nessa época era músico, boêmio e bombeiro. De dia, ensaiava na orquestra do Corpo de Bombeiros e à noite tocava nos conjuntos musicais da Lapa, naqueles cabarés estilo Rio Antigo. Eu, vez em quando, entrava com ele naquelas noites de sábado que só terminavam na segunda-feira, em algum barraco do Morro do Escondidinho ou do Catumbi.

Naquela confusão que sempre foi a saída do Bola, na Cinelândia (eles marcam para as nove da manhã, mas só são pontuais no dia que a gente chega às dez), marcamos encontro para a frente do Amarelinho lá pela uma da tarde, caso nos perdêssemos um do outro. O que era quase certo, naquela época em que “amor de Carnaval é fantasia, dura pouco, só três dias”, lembram?

A folia entrou pela Rua México: “Quem num chora num mama, segura meu bem, a chupeta…” Naquela muvuca, em frente ao Ministério da Fazenda, fiquei um tempão “conversando” com uma colega de trabalho, que estava no bloco Fazendários do Amor. Fui pegar o Bola de novo só na Tiradentes: “… lugar quente é na cama, ou então, no Bola Preta”. Como ficou lá parado muito tempo, dei um tempo, bebi mais umas e voltei pra Cinelândia.

No Amarelinho, não encontrei o Gustavo nem outro conhecido mais chegado. Acabei ancorando num grupo mais pra perto da Rio Branco.

Uns isopores vendendo cerveja, cadeiras de plástico, banquinhos de madeira, crianças, namorados, grelha improvisada fritando umas lingüiças e o samba comendo solto. Sambas de raiz: uns de terreiro, outros de enredo, partido-alto, pagode. Só sambão. Parecia ser pessoal que já se conhecia; da mesma família, da mesma comunidade, coisa assim. Naquela época ainda não tinha esse negócio de hoje, que os caras colocam uma corda e cercam prum grupo,  com objetivos comerciais ou corporativos, para uma empresa ou para qualquer conjunto de amigos segregados e segregadores. Não. Ali, qualquer um que chegasse na área era bem chegado.

Um cara no violão, um garotão no cavaco, uma mulher no ganzá, um velhinho no reco-reco, um tantã poderoso entre as pernas do cara musculoso e um negão barrigudo na cuíca (não sei porquê, mas todo tocador de cuíca é gordo). Vez ou outra aparecia um agogô, ficava um pouco e ia pra outras paradas.

Rapaz, cada samba maravilhoso. E tome Beija-Flor, Império Serrano (Lendas das Sereias, Rainhas do Mar), Mangueiras de todos os tempos. Os caras desencavavam tudo. Lembram do samba Conto do Boi Mandingueiro? “Oi era uma vez, era assim que começava…” Em Cima da Hora, 1973. O povo juntava mesmo.

Aí, entraram nos sambas da Portela. E a chapa esquentou. Não sei como é que a Portela conseguiu fazer tanto samba-enredo bonito. Todo mundo se mexendo. Mulheres, homens, mocinhas, garotões, velh@s e crianças. Copinhos de plástico cheios de alguma coisa; garrafas de cerveja abertas oscilando perigosamente nas mãos das pessoas; aqueles sanduiches de linguiça de porco no pão francês dormido, deliciosos. Um fuzuê danado.

No auge do batuque, o garotão do cavaco se deu bem com uma garota, disse que tinha de ir embora e ninguém conseguiu segurá-lo. Todo mundo ficou puto. O cara do tantã, que parecia ser o animador do grupo, pegou o cavaquinho, ficou de pé e perguntou se alguém ali tocava. Um baixinho semi-calvo, magro, assim meio pardinho, com um copo (de vidro!) de cachaça na mão, se ofereceu timidamente. Usava um coletinho de lã esquisito, surrado. Arrumaram-lhe um banquinho, ele tirou do bolsinho do colete uma palheta (do bolso do colete!) deu uma chapiscadinha nas cordas como que afinando o instrumento e perguntou o que mandavam. O do tantã falou: manda aí outro da Portela.

Meu irmão, o coroa botou a cachacinha no chão, baixou a cabeça e meteu um solo incrível! (… abre a janela formosa mulher, cantava o poeta trovador… abre a janela formosa mulher, à velha Lapa que passôôôo…). Todo mundo maravilhado. Então, ele solou o samba todo de novo e olhou pro cara do tantã, que caiu matando junto com os outros instrumentos: “Vem dos vice-reis…”.

Em seguida Pizindim, e Lendas e Mistérios da Amazônia, e Mangueira, e Unidos de São Carlos.

Aí voltou o garotão do cavaquinho – acho que o negócio com a garota não deu certo. Perguntaram pro coroa se ele tinha condição de mudar pro violão (era mesmo ruinzim, o cara; e há tempo ameaçando ir embora). “Até prefiro, disse a revelação”. Falava baixo, timidamente. E já tava na quinta cachaça, só das que eu tinha visto.

Pra quê! Tocava tudo no violão, e bem demais. A turma passou pra seresta. Nos sambas-canção, ele dava aqueles solos cheios de sacanagem. Todo mundo parava pra escutar.

Foi quando Gustavo apareceu. Tinha até esquecido dele. Chegou todo sorridente, com um copo de cerveja na mão. “Não te achei em lugar nenhum. A garota que conheci tinha uma amiga e… que confusão essa aí?”.

“Cara, tem um coroa aí que toca pra caralho! Violão, cavaquinho, qualquer coisa. Aproveita logo pra escutar. Ele já tomou umas dez cachaças. Daqui a pouco vai cair duro”. Um senhor do lado concordou:”É, ele toca direitinho. E já bebeu bastante”.

Gustavo abriu aquele seu olhão vermelho de boêmio, levantou-se na ponta dos pés e olhou por cima do povo. Voltou-se pra mim, balançou a cabeça e falou: “O coroa, é? Toca “direitinho”, é? Esse cara aí é o Baden Powell, Eustáquio. É O BADEN POWELL!”. Olhei o baixinho de novo. Inacreditável.

O pagode começava a esfriar. O coroazinho levantou meio cambaleante, despediu-se dos recentes companheiros, pediu licença e perdeu-se na multidão.

E o Gustavo resmungando: “Toca direitinho. O Baden Powell. Vê se pode…”.

1978 – A ex-amante do Vaduca

Não é necessário que se lembrem do Vaduca – Osvaldo Liberato -, que marcou, contra o Atlético, o gol que deu ao Villa Nova o título do campeonato mineiro de 1951. Nem de seus feitos anteriores ou posteriores, que apesar de não serem irrelevantes  não vêm ao caso para nossa história.

Na época do fato que passo a narrar, eu trabalhava em Furnas, em Botafogo, e minha vinda a BH era sempre motivo para deliciosas festas de família, nuclear e ampliada, com o pessoal iniciando a fuzarca assim que eu anunciava a saída do Rio. Às vezes eu me extraviava, como foi o caso.

Final da tarde de sábado. Próximo a Congonhas, cidade histórica a cerca de 70 quilômetros de Belô, há uma curva ascendente onde, se se olha à direita, aparece uma imagem grande do profeta Ezequiel, em pedra-sabão, dando as boas-vindas ao possível visitante. O que não era meu caso, que, cansado de topar sempre com a estátua, olhei para a margem oposta e vi, pela primeira vez, após dezenas de idas e vindas, despontar na subidinha do morrote a placona: Night-Club Azulão.

Bem, quer seja por julgar que era cedo para chegar em casa, quer seja porque uma boate interiorana próximo a uma horda de profetas fosse para mim uma atração a mais, o fato é que, “deixando falar a voz do coração”, dei uma guinada pela contramão e adentrei o espaço do prazer.

Era um casarão depredado, tendo na lateral pequeno alpendre de muretinha com colunas descascadas. Porta e janelas de madeira cambetas, mato pra todo lado. O lugar parecia abandonado. O azulão das paredes que um dia representara o nome do lupanar estava desbotado

Entrei. “Um gênio carinhoso e amigo…”. Peraí, isso é o poema do Luiz Guimarães, Visita à casa paterna, nada a ver.

Entrei. Sem o gênio. A sala e os quartos não mostravam vivalma. Continuei. De repente, no que um dia fora a cozinha, uma coroa arrumadinha, simpática, sentada num banquinho de madeira assim de uns dois metros de comprimento, fumando um cigarrinho, saudou-me com um sorriso convidativo. Pensei, estou sonhando.

Em cima do fogão, uma trempe com um bule. Ofereceu-me um café. Aceitei. “Quem está na chuva é pra se queimar”, é ou não é, Vicente Matheus?
Perguntei o que ela fazia ali. Respondeu-me perguntando o mesmo.  Afinal, quem vai a uma boate na beira da estrada, alegou, provavelmente sabe o que quer.

Perguntei pelas mulheres do local. Nesse horário, só ela. Na época eu encarava qualquer coisa, mas ali estava difícil. Era uma cafuza de rosto macilento, coberto de manchas de bexiga. Quando sorria só se via um dente. Se não tinha setenta anos, andava perto.

Aceitei o café e sentei no banquinho, ao lado dela. Veio num caneco de louça branco, com o escudo do Cruzeiro. Perguntou qual era meu time. Villa Nova, respondi. Seus olhos se iluminaram: “então você se lembra quando o Villa foi campeão mineiro, em 51”

“Bem, lembrar propriamente não, eu era criança, mas sei tudo sobre a campanha. Um a zero no Atlético, na final da melhor de três”.
A mulher riu feliz e completou: “gol do Vaduca!”.
“Gol do Vaduca”, confirmei.
Aí, a mulher não parou mais de falar.

Contou que, naquela época, depois de todo jogo ele vinha visitá-la. Pagava bebida pra todo mundo, ficava no meio da mulherada, ela sendo a teúda oficial. Anos quarenta e cinquenta, período áureo do Azulão. Ao final daquele jogo, a torcida do Villa invadiu o campo, ela inclusive, e saiu carregando Vaduca nos ombros.. Naquela semana, ninguém dormiu, na boate. Festa direto, bancada pelos jogadores e diretoria do Villa.

Abriu uma porta grande, de madeira, que dava para seu quartinho, foi lá e trouxe seus tesouros — fotos dela e de Vaduca, o terço que usava para implorar gol quando o Villa atacava e a figa que levantava para evitar os do Atlético ou do Cruzeiro… E, sagrado manto, a camisa que Vaduca usava quando marcou, no campo encharcado, o golaço que valeu o campeonato.

Talvez o soneto de Luiz Guimarães tivesse realmente algo a ver:

Uma ilusão gemia em cada canto,
Chorava em cada canto uma saudade

Mas o pranto não chegou a jorrar-me em ondas, como o do poeta.
Compramos, numa mercearia ali perto, uma lingüiça de lombo deliciosa– que foi logo para a trempe do fogão —, cervejas e um garrafão de cachaça, liguei o toca-fitas do carro e, à medida que a noite se aproximava, algumas mulheres foram chegando. O salão foi sendo limpo, alguns móveis foram desencavados de outros aposentos e o negócio virou festa.

Acabei dormindo por lá.

Cheguei de manhã em BH, para decepção dos amigos e familiares que me esperavam. Esperavam em termos, porque “comigo ou sem migo” eles também tinham bebemorado a noite inteira.

Mas, hoje, se vocês eventualmente tiverem acesso a meu baú de raridades, poderão encontrar, num dos seus compartimentos VIP, um terço de madrepérola, uma figa de guiné e a camisa número 8 do Villa Nova, meio desbotada e com pouco perceptíveis marcas de barro, ao lado de um pedaço de folha de caderno onde se lê: “a meu querido Estaquio (sic), com o todo amor de Sinésia, ex do Vaduca”.

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