MARTHE
Toda memória encontra seu destino (Lacan)
I
O Princípio
Antigamente, na África Central, quando se conhecia uma pessoa poderosa – do Bem ou do Mal – costumava–se matá-la e preparar com a carne uma moqueca bem caprichada, a ser comida por aqueles que desejavam incorporar o poder. Hoje, acabou-se o costume.
Tentou fixar o momento; pressentiu o fim da linha: o pequeno platô onde estavam sentados, as fábricas de compensado estilo europeu entre as colinas, as ruínas das casas dos belgas, os prédios baixos dos portugueses, com portas de aço sanfonadas… Se existe o kuiungula, pensou, gostaria de renascer no Brasil, refazer o trajeto, conhecer Marthe. Com outro final; ao lado dela talvez, quem sabe? Deu uma pitada na diamba e sorriu. Os outros também sorriram; compreenderam que ali viera para morrer.
II
O Fim
“É uma festa de ratos, onde cada um rói o que encontra” (Madagascar)
Os guardas, os carregadores e as comissárias olhavam espantados tentando adivinhar o que se passava. Passageiros europeus e norte-americanos, caminhando rápido, fingindo neutralidade ante mais essa idiossincrasia africana, cuidavam de passar suas muambas pela alfândega, mostravam os passaportes e abriam algumas malas com a tranquilidade de quem sabia que aquela cena toda era só para inglês ver. Todo mundo na gaveta. O homem da mala da CIS já tinha passado e acertado tudo. De vez em quando arriscavam um rabo de olho na direção do espetáculo, mas logo voltavam a atenção para seus bagulhos.
Zaïroises, cameruneses, togoleses e costa-marfinenses, atentos a suas diversas conexões, acompanhavam respeitosamente o drama da mulher e, como que compreendendo suas razões, circulavam cautelosamente o olhar à procura do objeto de toda aquela latomia.
As tranças adornadas de miçangas estremecendo sobre as costas do bubu, a bunda volumosa subindo e descendo em soluços espasmódicos, o esbater dos punhos sobre o piso frio, os gritos lamentosos entrecortados de gemidos lancinantes e as lágrimas escorrendo em cascatas de dor e desesperança, assemelhavam-se a um público e escandaloso orgasmo, cujo frenesi aumentava com o crescente interesse dos circunstantes.
Os olhares circulavam pelo amplo saguão e invariavelmente cravavam-se com desaprovação nas minhas costas, curvadas sobre a balança explicando ao parrudo inspetor mongala por que minha volumosa bagagem deveria ser despachada isenta de vistoria (porra, ou a CIS não tinha pago a propina, ou a tinha pago ao cara errado! Fiquei em dúvida se devia abordar o assunto. Vá lá que o Zaïre tenha sido acometido de um súbito ataque de moralidade!). Os gringos tinham a bagagem rapidamente examinada e liberada (com eles tudo certo, pensei amargurado).
O guardinha mostrava-se quase convencido, mas não deixava de prestar atenção na mulher se arrastando e dando socos pelo chão, como se o mundo inteiro tivesse que aderir àquela despudorada mostra de paixão.
Puxei a bagagem para a área restrita a passageiros, dei uma de desentendido para cima do mongala, dividido entre o drama e a mala, ia caindo fora (quer dizer, dentro da sala de embarque) quando ela se levantou, avançou decidida pelo corredor polonês de africanos em diáspora, abaixou-se e agarrou-me pelas pernas: Huango, José, Huango! Nkuma na Omari ya José! Quero morrer! Quero morrer! Huango, José, Huango!
Bem, não dava mais para fingir que não era comigo. Deitada de bruços desfiou um estridente palavrório em kikongo, do qual só entendi um ou outro termo, e pouco a pouco a disposição da aduana foi piorando em relação a mim.
Cheio de razão o cara mandou-me arrastar a bagagem para o canto e me afastar. Agora sim, minhas estatuetas de marfim, os jogos de xadrez, cinzeiros e presépios de malaquita, meus chibiuzinhos de diamante e esmeralda, vai tudo para a declaração. Ah, meu Deus! Pelo menos ia para outra sala, embarcava e ficava livre do escarcéu provocado por Marthe. O guarda pegou-me rudemente pelo braço – a solidariedade zaïroise prenunciava momentos trágicos para meu bolso – e saiu me arrastando para longe do fuzuê. Olhei para trás.
Você nunca sabe que a última vez que vê uma pessoa, aquela é a última. Se soubesse, talvez pudesse perceber toda a energia e beleza que possuem os instantes derradeiros.
O olhar de Marthe parecia querer guardar a imagem daquele momento no mais profundo da alma. Não era desespero insano. Nem desesperançada esperança. Era assim uma revolta desalentada, a dor de algo interno despedaçado e irremendável. Nunca tinha visto algo semelhante. Saí com o olhar na cabeça, os dólares no bolso – dei uma apalpada para sentir se estava tudo lá –, a bagagem na mão do mongala, e à frente a comida francesa de bordo, gostosa, os chocolates e a música internacional do voo da Swissair. Brasil, lá vou eu!
Naquela pressa de partir, de conseguir passar com as muambas, de me aproximar da redenção econômica, social e amorosa, de usufruir a sensação de ter sobrevivido contra todas as probabilidades, me chegam os policiais federais com a relação de mercadorias apreendidas e a fatura do imposto a pagar. Olhei, conferi, é a falência!
Aí, amigos, acabei embarcando. Sem impostos e com direito a tapinha nas costas. Sabe graças a quê? Àquela estapafúrdia kimpaba! Os bangala se reuniram em torno da trapizonga (que eu hesitara em levar, pelo inusitado da forma e tamanho), conferenciaram, chamaram o chefe, olharam detidamente, apontaram detalhes (evitando sempre lhe colocar as mãos), balançaram a cabeça em unânime aprovação e me liberaram junto com a bagagem. Discutiram asperamente com Marthe antes de botarem–na pra fora do aeroporto.
III
O Meio
Lac Idi Amin Dada, antigo Lac Edouard: o mais piscoso.
Lac Mobutu Sese Seko, antigo Lac Albert: o mais rico.
Lac Tanganika: o mais longo.
Lac Victoria: o mais misterioso.
Os Basundi em terras de Kakongo
Entrei hoje na Internet. Navegando ao azar pelo Google dei com o relato de certo padre Joaquim Martins, que foi para Cabinda no início do século XX e descreveu a geografia e cultura locais, dentro, evidentemente, de suas naturais limitações europocêntricas. E, talvez, do pseudomoralismo religioso necessário para que fosse publicado pela instituição a que servia. Entre os hábitos dos Basundi, que dominavam as terras às margens do Rio Lukula até serem desalojados do lado esquerdo pelos Kakongo, cerca de cem anos antes, existia o que chamavam de Fundação, ou Funda-Nkanu. Pelo que entendi das observações do dedicado missionário, trata-se de uma espécie de tribunal comunitário-familiar, onde são julgados todos os tipos de causas: heranças, dívidas, roubos, estupros, adultérios, uso indevido de terras e mesmo predações ecológicas. Reunem-se os mais velhos, rodeados pelos seus Banangas – misto de promotores públicos, escreventes e detetives (acúmulo de funções em prol da economia processual, diria o Plenário do TCU) – ouvem o “advogado” de cada parte, organizam processos e, se necessário, fazem perícias e ouvem testemunhas. Ao final aplicam sanções, ou absolvem. Eventualmente, quando ocorre incêndio, inundação ou guerra danificando ou desaparecendo com o objeto do julgamento, costuma-se encerrar o processo antes mesmo de qualquer parecer, alegando, talvez, falta de pressupostos válidos para sua continuidade. Julgado, delegam a aplicação da pena a algum membro mais cioso da necessidade de punição, mais sádico ou com maior vocação pra carrasco, e assim é resolvida a pendenga, quer dizer, encerrado o processo. Como aqueles velhos normalmente detêm todo o saber relativo às tradições, usos e costumes locais e, além disso, frisava o pesquisador, possuem apurado senso de justiça, nunca havia recurso. Mesmo porque, não havia juízo a quo para recorrer.
Achei interessante. Quando tinha meus sete anos, roubei um brinquinho de ouro, desses de bolinha, que ficam pregadinhos no lobo, pertencente a minha irmã mais velha. O objetivo era nobre, dar de presente no Dia das Mães que se avizinhava. Pra ninguém ficar sabendo, fiquei quase uma semana com o parzinho debaixo do travesseiro, em cima da arca grande onde eu dormia. Acordava cedinho e dobrava a roupa de cama, deixando tudo empilhado, arrumadinho por cima de meu tesouro. O pessoal deu falta, procurou, procurou, e eu, me fazendo de santo, até ajudava, na maior desfaçatez. No domingo da data, levantei cedo e dei a minha mãe o presentinho, cuidadosamente embrulhado em papel de pão (aquele pardo, lembram?). Ela abriu. Olhou pra minha cara e balançou tristemente a cabeça como quem diz: então foi você… para agravar meu condenável ato, ocorrera um desastre: comigo dormindo em cima, as bolinhas racharam na costura, ficando como duas boquinhas abertas para o mundo, parecido as cabecinhas de uma flor vermelha que grassava por todos lados de minha casa, a flor-de-papagaio.
Formou-se o tribunal familiar. Vieram a tia Zulmira e sua mãe Lilica, o primo Sonego; Balalau e Cacilda, meus padrinhos, foram os Banangas. Minha mãe presidiu. Fui condenado. À minha irmã mais velha, não sei se por vocação ou por parte interessada, foi atribuída a aplicação da pena: uma escumadeira, dessas de mexer arroz, de flandres, foi aquecida ao vermelho e aplicada na minha mão direita. Um cheiro danado de carne queimada. Berrei tudo que podia. Ninguém se compadeceu (quer dizer, não vi ninguém interceder em meu favor. Também, com os olhos enevoados pelas lágrimas…). Não tive sequelas (bem, pelo menos físicas). Nem creio que o castigo tenha interrompido uma promissora carreira de ladrão. Os pequenos delitos posteriores, mesmo feitos com mais cuidado, demonstraram que meu nível de capacidade sempre se mostrou abaixo do nível de aspiração. Mas guardei a lembrança do ritual: sem dúvida, aquele julgamento era a tal Fundação.
Outra citação do padre era a Casa das Tintas. Dizia ele tratar-se de um lugar – separado do núcleo da comunidade – para onde iam as mocinhas logo que chegavam à primeira menstruação, acompanhadas sempre de uma prima, amiga ou agregada familiar que por ali já tivesse passado. Segundo dizia o devoto pesquisador, aprendiam na Casa as respostas futuras do corpo, a higiene com o fato novo e a prevenção de doenças. E que, às vezes, alguns homens lá penetravam clandestinos, buscando descobrir os segredos das mulheres. Estes, quando descobertos, eram severamente punidos.
Bem, era isso, mas acho que não era bem isso. Quando morávamos em Raíz da Serra, perto da subida para Petrópolis, havia por ali um local com matas, cachoeiras, uma casa maior, vários barracos brancos emendados, gerenciados por uma mãe-de-santo, amiga da minha família (se bem que meu povo não era muito ligado em candomblé não). Uma vez, ela me convidou para passar uns dias lá. Fui. Só um catre, quarto sem móveis, nada. De noite começava a função. Aquele monte de ninfeta e viado, vestidos de branco, fofocando. E umas mulheres, mais velhas, que ficavam ensinando as coisas. Vinham umas menininhas de uns catorze anos, chegavam de cabeça baixa, tímidas. Iam, em seguida, para uns quartos grandes. Rosto e braços pintados de urucum, com umas camisolas frouxas, aprendiam a fazer a higiene íntima, a menstrualidade e como lidar com homens.
A menina era colocada sobre um leito de punhais, as mãos amarradas numas cordas e vinha um cara por cima para desvirginá-la. Tinha de impedi-lo, só mexendo os quadris e tomando cuidado, evidentemente, para não machucar as costas nos punhais. Na verdade só se ameaçava, porque era proibido comer menina pintada. Mas a jovem acreditava que era pra valer e se contorcia de todo jeito para fugir da estocada. Depois vinha uma mulher mais sabida, masturbava a gente para aliviar a tensão e ensinava à virgenzinha cuidados a tomar com a anatomia masculina: como lavar, não dar pancadas nas bolas, a cortar o prepúcio, a sensibilidade da cabeça… Aquilo ali era um negócio meio rudimentar, de regras elásticas, mas, acreditem, havia um respeito muito grande entre as pessoas, e aqueles que frequentaram a casa passaram a compartilhar, ao longo de toda a vida, uma fraterna amizade.
Logo que saíam da Casa as garotas eram chamadas de ndumba. Ndumba diziam ser “preparada para casar”, mas as pessoas da região achavam que o termo significava prostituta. Mesmo porque, as meninas saíam dali sabendo um monte de coisas, e sem os traumas que as outras – não iniciadas – carregavam.
Frequentei a Casa em Raíz da Serra por vários anos. Depois, afastei-me naturalmente, talvez porque meu período de aprendizagem espíritual-sexual tivesse chegado a termo.
O Retorno
No Brasil não queriam mandar engenheiro, cara assim muito especializado. Achavam melhor um técnico, para apreender a tecnologia de campo, voltar e botar logo a mão na massa. Mas eu queria muito conhecer a África, saber de verdade como era aquele negócio lá. O entrevistador norte-americano ficou encantado comigo. Um negro que fala inglês e francês, com experiência de trabalho internacional e boa teoria em geração e transmissão de corrente contínua. Fui selecionado no ato. E muito a contragosto minha empresa exportou-me para a África Central: The Real Africa, como diziam os folhetos da Soletur. Eba!
Todos no aeroporto. Amigos e amigas, mulher e ex-mulheres: aqueles para me desejar felicidade, estas para monitorar se eu ia mesmo partir, se não estaria inventando esta viagem para fugir aos compromissos familiares e eludir o pagamento das pensões alimentícias.
A oficial da época acercou-se, com nossa filhinha no braço, para despedir-se. Os bracinhos mimosos me enlaçaram o pescoço e o coração. “Cê volta, pai?” – “Claro, filha. Daqui a um ano tô aqui (bem, o contrato era de um ano e meio, prorrogável por mais seis meses, mas…)”.
Cheguei a Kinshasa na manhã ensolarada de um Domingo de Ramos. Os zaïroises na rua com raminhos cheirando a hortelã-pimenta (cheguei o nariz bem perto e esmaguei uma folhinha, para provar). Mulheres, crianças, homens, todos em lentas procissões escorrendo por várias partes da cidade. No casarão tipo república, Antonio Furio e sua mulher Françoise, mulatona bonita, pingentes grandes nas orelhas, anéis e pulseiras vistosos, nos receberam bem. Éramos três brasileiros, eu, Halley e Rapoz, este em constante crise de identidade – morava no Brasil, nascera no Quênia, descendente de indianos de origem portuguesa, e com passaporte britânico…Eita!
Na porta, uma diversidade de mulheres: gabonesas, camerunesas, mundimbas, bangala, bayombe… Todas grandonas. Nos dois dias que ali passamos tentei experimentar todos os sabores. Não deu. Era muita variedade. Maria de Angola: aqui no Zaïre as mulheres saem à procura dos homens, em Luanda, não. Ficamos num lugar esperando. Aqui a gente já chega na cama cansada. (Tá certo, pensei, mas os homens ficam mais descansados, podem ter melhor desempenho, hehehe…).
No quarto, olhou meu corpo demoradamente; “Você é Basundi, há muito não vejo um. São raros”. (Por que seria, estão em extinção?, pensei.).
Ao saber que eu estava indo para o Bas-Zaïre, balançou a cabeça pesarosamente: “Um Basundi em terras de Kakongo”. E partiu pra cima de mim, como se fosse a última trepada de sua (ou minha) vida.
Saída de Kin para Inga. Olhei com desconfiança: achei a balsa meio antiga. Parecia já fora do prazo de validade para atravessar aquela imensidão dágua. Um rio bravio, largo. Cinza profundo. É o Rio Zaïre. A África começa aqui. Dois tipos de bilhetes: se pagar direto no cara da roleta, sai pela metade do preço da bilheteria. Igual ao Maracanã.
Van nos esperando: Constructeurs Inga-Shaba – CIS. Ahaan. Pensei que estava sendo contratado pela GE e descubro que pertenço a um consórcio multinacional com empresas suecas, italianas, alemãs e, como seria lícito esperar, norte-americanas. Todos mamando nas tetas do Mobutu, quer dizer, da Société Nationale d’Electricité – SNEL, a Eletrobrás local.
Bas-Zaïre. Choças espalhadas pelos matos altos, com terreiros comuns. De tempos em tempos pequenos grupos familiares carregando lenha e feixes de mandioca na cabeça, as mulheres, de liputa – pano colorido em torno dos quadris – os homens em camisas de manga e calças de tergal rustidas. Lembravam minha infância em Ponte Nova, os trabalhadores da roça voltando a suas casas à tarde. Na primeira semana fui o premiado com malária. O Doutor Ronnie Marsh – dos poucos americanos simpáticos, casado com uma zaïroise – encheu-me de comprimidos e suco de laranja, dizendo que com tratamento malária não mata e que, após uns dias de delírio, estaria pronto para trabalhar. Bebi, suei, mijei e ao final da semana, já melhorzinho, fui fazer um reconhecimento dos botecos do lugar. Que eram muitos. La Pergola, a uns quinhentos metros do Camp americano, onde morávamos: boite com DJ, sofisticada, bem decorada, ambiente acolhedor com música e bebidas variadas. O Boule Rouge, não mais que um boteco de madeira, música e tira-gostos zaïroises e cerveja sempre quente (a detestável Primus local). Mas tinha uma peculiaridade: uísque bom e barato – nunca me revelaram o fornecedor; se era falsificado, foi das melhores falsificações que bebi na vida –, sempre tinha gelo e o ambiente era bastante popular. Ficava na saída da rodovia para Matadi. O Kiff-Kiff, onde as mulheres faziam ponto, uísquezim sem-vergonha, música de uma vitrola velha – usava ainda discos de vinil, todos arranhados. Vivia cheio de bebuns chatos e, além de o pessoal só falar kikongo e swahilii, ficava num emaranhado de barracos de papelão, lata e compensado que o tornava difícil de encontrar (e mais ainda de sair para o lado certo, principalmente depois de algumas canas). Esses eram meus botecos preferidos, havendo ainda o Nganda Maboke (todo florido, perfumes variados e embriagantes), no Camp Kinshasa, na estrada em direção à obra, e o Bassin Club (com bela piscina), perto da Maison, onde só se entrava com convite; o Gandola, em Moanda, cidade praia a uns 40km dali e, em Matadi, a Boite Nzimuaka, o point local, imitação caseira da Studio 54 de Nova Yorque. E o Nsasa, night-club da ralé.
Início difícil. Lembro-me de Halley, ao ver o pessoal reunido em torno da bandeira do Zaïre: “Esses pretos vão pra frente… porque uma coisa que eles têm é união”. Na fila do restaurante: “Aquele preto que joga o ovo pra cima com aquela pazinha. Qualquer hora ele pega e joga ele na cara da gente”. Passando pela estrada, de carro, e os zaïroises a pé: “cada preto desses deve ter uma bomba atômica na barriga”. Culpas judaico-cristãs. E eu ainda bem baleado.
Comemorei a saída do delírio malárico no Kiff-Kiff. Tomei todas. E dei vexame.
Aajoelhei-me diante da gorda proprietária e implorei: “África, cauterizai o meu umbigo, oh, mãe”. Acrescentei, “ o Brasil foi construído na dor. Já pagou seu preço. Vocês me devem”. Aí me apareceu o vulto gnômico de Fala-Fala e, numa nuvem de maconha e maluvo – a terrível cachaça de palmeira –, sussurrou, misterioso: “En Afrique, la mort abreuve la salvation”. Fui dormir com aquilo na cabeça (a morte impregnando a salvação. Eu, hein?).
Acordo cedo no outro dia. Ainda porrado. Ponte Nova? Não, Novo Parto: tecnologia absorvida em lingala, em torno do hasteamento da bandeira . O africano ainda não tinha sofrido. Está pagando o preço da longa liberdade. Valerá a pena? De qualquer forma, é o único caminho (meu delírio chega ao fim, ou ao verdadeiro início?).
Comecei a trabalhar. Meu chefe era um canadense chamado Jack, que houvemos por bem apelidar Jackaré, pela semelhança com o dito. Meu parceiro de trabalho – fomos divididos em duplas, transnacionais de preferência – era um inglês de pele manchada e cracachenta, baixinho, careca, muito boa gente. Acordava assobiando “Brasileirinho” e “Aquarela do Brasil”, de cabo a rabo, motivo pelo qual o apelidamos de Passarinho. E americanos, indianos, italianos, belgas, suecos e escoceses, os dois últimos nossos melhores amigos. A obra… ah, a obra… Inga-Shaba, à época o maior empreendimento de transmissão em corrente contínua do mundo, com usina e subestação geradoras em Inga, no Bas-Zaïre, região noroeste, mandando energia para o sul do país, Shaba, na província de Katanga, a 800km dali – permanentemente em guerra –, e no meio as subestações de Kikwitt e Kolwezi, em plena floresta tropical.
Quando nós, brasileiros, chegamos, a obra chegara a seu pique máximo, após várias interrupções por razões financeiras e políticas. Os zaïroises especializados do empreendimento, além da relação algo nebulosa com o governo de Mobutu, exerciam atividades diversificadas na comunidade de Inga: Nsiala era gerente da Boite Pergola, Bompimbo vendia muamba, Zachary era administrador do Camp Kinshasa, o mais pobre (o Camp CIS, onde eu morava, era o mais riquinho, apesar de também não ser grande coisa), e Séia e Makonda, ambos sócios da Munga, passando a maioria das tardes na Maison bebendo e conversando com as “maisonetes”, apesar de eu achar que Makonda tinha um envolvimento político com o regime anti-Mobutu maior do que as simples opiniões que expressava. Havia ainda Felize, um mundimbo raquítico, evangélico, de pouca comunicação com as pessoas “do mundo”. Do grupo com quem fiz amizade, só Fala-Fala, o conterrâneo de Marthe, não exercia atividade alguma, pelo menos que eu conhecesse.
Pika Ruganga
Tinha que comprar o macaco, fiquei trabalhando e não comprei. Quando passei na Maison, perto da hora do almoço, o macaquinho já tava na geladeira. O. tinha comprado. Honorine, com várias na cuca, dizia que casos de amor com mindele são efêmeros. O negócio era mesmo baiser quando tiver vontade. Lembrei que dias antes ela havia negociado um peixe por uma trepada.
Demorei a descobrir a diferença entre mindele e muzungo. Mindele era qualquer estrangeiro, muzungo era, além de estrangeiro, branco. Mas só usavam esses termos quando queriam ofender. Na boa, usavam sempre o nome verdadeiro, ou o que inventavam para a pessoa, que também não era sempre o mesmo, mudava com o humor do zaïroise. Aderi ao esquema. Achei que Marthe, às vezes, era predominatemente Omari, e que Honorine, em seus bons momentos, estava mais para Nonô.
O. reclamou que eu era méchant. Nonô disse que ela é que era. Falei com O. que nosso caso estava na hora de acabar . Respondeu que mataria a mulher que visse comigo, cortava de gilete; tirou uma da bolsa, com um esparadrapo do lado, e fez o movimento rápido de cima para baixo: zuct. Eu ri. Que ia presa e seus filhos não teriam problema, porque (não entendi, falou em swahilii)… Sossegou um pouco. Afastou-se. Mas antes pediu: repete que não vai ficar comigo. Repeti. Saiu invocada.
Nessa noite fizemos uma via-sacra pelos botecos: Pergola, Kiff-Kiff, Nganda Maboke… Honorine pagando cana pra todo mundo, o tempo todo. Foi nessa noite que Marthe me ensinou a ruganga. Pika Ruganga. O ato todo, balançar a pica na ruganga. Horas e horas. Ela gozava de esguicho. Parecia que mijava sem parar. Desmaiou. Eu fiquei zureta. “Onde você aprendeu?” “Faz parte da formação de uma jovem monrega, José. Mas não pode ensinar. Não conta pra ninguém, José, se não eles me…!” (eles quem?)
Disse que é comum em Rwanda. Todo ruandês faz isto, e a mulher ruandesa já tem o grelo grande por causa da prática desde jovem. Que a mulher fica fatigada, e é preciso tomar yogurte de manhã para se refazer. Outros dias depois fizemos, mas não foi tão bom quanto da primeira vez. Ela diz que é porque havia tempo – mais de três anos – que não transava desse jeito, e resolveu me ensinar porque o italiano que a cantou na Pergola disse que sabia fazer e ela vacilou entre mim e a ruganga. Aí, pensou, vou ensinar pra ele (apesar de saber que depois vou querer fazer com outra mulher e que ia ficar puta da vida). Perigoso mesmo: a ruganga é realmente impressionante!
Marthe Omari
A primeira vez que vi Marthe, em meados de abril, já me sentia tão integrado ao solo africano e tão imune aos riscos de não conseguir cumprir o contrato assinado com o Consórcio, que pude olhar despudoradamente as tranças bonitas, o sorriso aberto na boca escancarada e aquele bamboleio provocativo dos quadris. O sueco com quem dançava – contratante eventual de seu amor provisório – nem deu bola. E nem adiantava dar. Inga era terra de ninguém. Ali valia tudo. Ela olhou para mim, levantou-se da mesa, os dois indicadores em pé no ar, prum lado e pra outro, e veio se remexendo ao merengue africano de Messiê Francô. Atraquei-a. Pregado a suas ancas, bêbado com o som da orquestra – um contrabaixo na frente marcando forte como se fosse um surdão, tum, tumtum, tum, tumtum – seu rosto colado ao meu, nossos suores, cheiros e melados misturados de miosótis, camélias e jasmins. Quentes e úmidos, nós, a noite e o clima no Nganda Maboke.
Saiu sorrindo, a boca grande, de dentadura branca e farta, ombros e cadeiras largos e fortes, balançando. Aquela cor de lado de dentro da canela, que Bororó dizia ser do pecado. Voltou à mesa de garrafas vazias, pratos e ossos de galinha e gimrique – a preá africana –, com meu olhar invejoso pregado em seus braços, atravessados sobre o ombro do gringo.
No outro dia não consegui trabalhar direito. Abril despedaçado, sol de rachar, secionadoras e disjuntores pegando fogo sobre estruturas metálicas onde dava pra fritar um ovo. Agachado sobre a brita escaldante, o ar exalando nuvens de vapor saindo do filtro da purificadora de óleo, tentei convencer Bompimbo a me dizer quem era a mulher de cabelo trançado, apliques e bubu colorido, de braço dado com o sueco. Bô desconversava: problem, Rodriguês, problem, Rodriguês… melhor esquecer dela.
Marthe, Bompimpo, o Doutor e outros
Não adiantava perguntar pra outro zaïroise. Bô era com quem eu mais tinha afinidade. Além disso, era cobra criada. Nem aquela adoração irrefletida pelo mindele nem aquele lampejo de ódio contido que lhes perpassava os olhos quando olhavam de transverso. Se me dizia que era problem, é porque talvez realmente fosse problem. Mas que se danem os problems. Eu não vim mesmo aqui para ser feliz. Mas não desesperei. Num lugar daquele tamanho, impossível não a encontrar logo.
Amor e Problem
Numa noite quente do início de maio fui com João, o angolano, a uma festa no Bassin Club, que tinha visto anunciada num cartaz pendurado na parede de um barraco. Olhei pela nesga da porta pra ver se estava. O segurança bloqueou a frente: só convidados. Não posso nem olhar? Não. Fomos ao Boule Rouge. Vazio. Bebi uma Primus, bem quentinha (o pessoal aqui não liga se a cerveja tá quente ou fria, tanto faz. Eu não suportava). Dali saímos. Entramos a pé pelo meio dos barracos até o Kiff-Kiff, o primeiro boteco que fui quando cheguei a Inga, com Wyombo, administrador do Canteiro. Não é que daí a pouco chegou a mulher? De braço dado com outro sueco. Pelo jeito, o negócio dela era viquingue. Veio falar com João que me conhecia, deu aquele sorriso bonito e saiu dançando com ele. Voltou pra mesa do sueco e não deu mais bola pra mim. Fiquei desesperado.
O vigia veio dizer, à tardinha: tem uma garota aí que quer falar com você. Eu tinha acabado de dar uma corrida e saía do banho. Era ela. As tranças bonitas, cheias de miçangas, a cara larga, o liputa colorido, frouxamente apertado à cintura. Parecia que aquele pano ia cair a qualquer momento. Entrou, sentou, cruzou as pernas e ficou me olhando de viés, encabulada. Ficamos ali, um olhando para a cara do outro. Ofereci-lhe uma coca-cola. Aceitou, mas não tocou no copo. E os seios cor de canela ameaçando espirrar para fora do invólucro. Eu não sabia o que fazer. Não tinha me planejado para aquela repentina aproximação. Perguntei se podia fotografá-la. Disse que sim. Peguei a máquina. Depois de várias poses, perguntou: só aqui na cozinha? Não quer me fotografar no quarto? Fomos. Ela deitava de lado, com a mão no rosto, ficava de bunda pra cima, e eu fotografando, fotografando. Perguntei de onde era. Disse que era do Leste, de Swahilii. Perguntei como era “eu te amo” em Swahilii. Sorriu e respondeu: “na kupenda”. E eu, idiotamente: “na kupenda, Marthe”. E ela: você sabe meu nome? E eu: desde o primeiro dia em que dançamos, há um mês, na Pergola. Não se lembrava de termos algum dia dançado. Isso me magoou. Às vezes, o que é tão marcante para um, nada significa para o outro. Começou a ficar à vontade, movimentando com graça os ombros largos. Alisei seu braço, de leve. Queria guardar aquele momento bem no fundo do coração. Problem, me dissera Bompimbo. Problème, me dissera Nsiala. E comecei imediatamente a amar esses problemas todos.
Makambo Mikoloyo
Na esbórnia, com todo mundo ligado, a mulherada gritava aos quatro ventos: Makambo Mikoloyo! É uma expressão com mais de um sentido. Pelo que entendi, significa indistintamente Festa Boa, Alguém se Fudeu ou Troca o Disco! Bem, se há correlação entre essas três coisas, não deixa de ser bem profunda (hehehe).
Sábado. Eu e O. a caminho da cidade-porto de Matadi. No restaurante flutuante do Gandola, dei-lhe uma mordida nos lábios. Começou a inchar. Em troca, jogou-me um copo desse refrigerante esquisito, Vita-lo (embalagem parecida com Gatorade, gosto de Jesus, do Maranhão, e tão ruim quanto ambos). Chegamos. Fomos direto para o Nsasa Night Club. Bebeu pra cacete e acabou jogando um copo de cerveja, cheio, para cima, atingindo uma garota. Que era de paz, e não reclamou. Dormimos na casa de sua amiga Jacki. Aliás, mora lá mais um monte de mulher de Inga, que toda noite sai para a vida: Isabel, Kassongo, Marie Pratt (para diferençar as Maries, as pessoas as chamam pelo sobrenome do europeu ou americano com quem viveram mais tempo nos últimos anos) e algumas locais. Na noite encontramos Josephine Snel (morou com o PDG da SNEL, M. Gwendolin, mas acharam esse sobrenome complicado), Marie Romie, Carine e umas amigas que não sei de onde eram.
Pela manhã, encontramos Virginie, Hélène e Clara (por quem O. tem certo tesão). Apresentou-me uma velha mamã, toda pintada e ar meio relaxado. “Ela fez a vida com minha mãe em Kindu (durante oito anos)”. Fomos para a casa dela. Conversaram animadamente. Dormimos os três na única cama de casal do quarto, arrumado para uma foda rápida. Banheiro externo, com banho de cano. A cozinha é um fogão de grelha – na verdade, uma churrasqueira – também do lado de fora. Os pratos dormem no chão, na sala.
Na mesma manhã visitamos um sobrado, com um único quarto, uma cama para casal, com um criadinho mudo, uns cremes (huum, também preparado para uma foda, será que O. só tem amiga puta?). E outra velha, que vi na noite anterior – então, não me parecera tão velha –, com sua filha também da vida (saem juntas). Dois netos pequenos (um deles, filho de coreano). Bem fresquinho o sobrado. A mãe de O. chamava-se Honorine; mesmo nome de sua amiga inseparável.
Matadi, à noite, é dominada por marinheiros. Muita trepação a dinheiro. Fico pensando, no fundo, a prostituição é um legítimo meio de vida. Apesar do alto risco de feridas físicas e psicológicas, principalmente para mulheres e crianças.
No geral, o zaïroise vai resistindo como pode, criando defesas, como a de não criar laços afetivos com o estrangeiro; muito mongali (uma espécie de cafetão, um pouco mais amigo da puta, menos dominador… e monogâmico!). À tarde encontramos uma baranga alegrinha. O. me informa que ela já foi terrível. Pertenceu à primeira fase de Inga – 70/74. Viveu com um americano e teve até uma boa vida. Mostrou-nos fotos de Nicole, sobrinha de Honorine. Morou com um belga que voltou para a Bélgica e depois foi para Serra Leoa. Sua mulher morreu e ele mandou buscar Nicole com o filho pequeno em Matadi. Pois não é que na volta, na barca, soubemos por outra amiga que a sobrinha de Nonô tinha morrido, lá na Bélgica? ( o zaïroise me impediu de entrar na fila de carros pequenos – que estava menor – e depois deixou um da Missão, do tamanho da minha van, entrar no mesmo lugar. Fiquei um tempão pagando sabão pra ele. Que escutou calado. Tinha levado uma graninha por fora, o filho da puta!). Pela manhã soubemos que Nonô estava hospitalizada. Brigitte, uma ninfetinha agregada da Maison (aprendiz de puta) contara-lhe o caso da sobrinha, na raça, sem nenhuma preparação. O. criou o maior caso e disse – para mim – que elas não são mais crianças, já sabem trepar muito bem, podem bem entender as consequências dos fatos da vida. Fui trabalhar. O. voltou a Matadi, com Nonô.
Enquanto George, o inglês, foi buscar pasta para lubrificar contatos, fiquei lendo uma revista que tava dentro da caixa de ferramentas dele. Diane McGuiness, psicóloga da Universidade da Califórnia, diz que as meninas estão mais alerta para as “pistas sociais”. Leem melhor as expressões faciais e são mais hábeis para interpretar o conteúdo emocional de um discurso. O homem tem mais lateralidade, ou seja, suas funções são controladas pelo lado direito ou esquerdo do cérebro, enquanto as mulheres parecem tê-las difusas entre os dois hemisférios. Isso as levaria a pensar mais globalmente e o homem a pensar de maneira mais específica. Huumm, homem=analítico, mulher=sintética. Pois é, caixa de ferramentas também é cultura, hehehe.
À tardinha fui à Maison. Uma zona. As crianças perdidas não se sabe onde, Jolie estudando, Brigitte sumida com Antônio. Criei um caso fudido. Brigitte apareceu, alegou não ter dinheiro para comprar arroz nem óleo, por isso ninguém tinha jantado. O pior é que nem eu também. Peguei 50 zaïres emprestados da minha coleção e trouxe o material pra ela. Aí, fizemos um jantar, até bom, consideradas as circunstâncias. Tô achando que O. tá muito sem dinheiro e se fudendo por causa de mim. Tá fazendo pouco a vida, e só faz quando vai a Matadi. Aí volta com grana pra sobreviver um tempo. O que não tem agora. Achei Brigitte e Jolie incrivelmente irresponsáveis. O. não pode deixar as crianças abandonadas. Que merda! Eu, à mesa do Skons (boteco novo, mas antigo) com três crianças e as verdadeiras (i)responsáveis precisando sair toda noite para fazer a vida, a tomar refrigerante e sabendo (e as crianças também) que suas mães não podem fazer outra coisa.
Desconfio que O. tem razão em matéria de sexo. Sinto-me engolido e minha porra é uma parte de mim que se esvai. Preciso me achar…
… e nossa transa sexual não está numa boa. Estamos compensando com violência contra outras pessoas e nós mesmos. O. contou-me suas transas, nos idos de fevereiro com Freddy Talismã e Marie Ngonduka: “Il a le pouvoir, José, ele tem o poder!” Parecia que estava com a veia confidencial.
– Lembra aquela noite em que brigamos, e eu fiquei na festa?
– …
– Pois é, é que tinha chegado o italiano que sabia ruganga. E eu queria sair com ele. Tava com saudade da ruganga. E você não sabia fazer… hehehe… Foi aí que resolvi te ensinar.
– E por que não me ensinou antes…
– Ciúmes, José. Ciúmes, meu amor! (e se agarrava frenética a meu pescoço) Ficava pensando em te ensinar e você sair fazendo com tudo quanto é zaïroise que encontrasse… E sorria, a putinha… (lembrei-me do provérbio, “os dentes que mais te sorriem são aqueles que te comerão…”)
12/08/81. Tenho que responder as cartas do Amauri (04, 09 e 23/07), de Maria Helena, 28/07, e de Márcia (15/07). Recebi todas ao mesmo tempo. Esse correio do Zaïre é do caralho!
Nesta sexta-feira fui almoçar com Omari. Chegando lá, ela disse que tinha ido a Matadi, que se sentia muito cansada (saiu às 7h de Inga, voltou às 15, carregada de mantimentos), e que bebera muito; mesmo assim fez a comida. Estavam lá Nsiala, Bompimbo, João, Makonda, Fala-Fala… Tinha tortue (tartaruga) ao molho, banana pilée, arroz, peixe assado com molho em cima, e muito piri-piri (pimenta parecida com a malagueta) em separado. Comeram um pires inteiro dela.
IV
O Fim do Princípio
“Os dentes que mais te sorriem são aqueles que te comerão” (Luba)
Sábado, 15 de agosto. Aniversário de Omari. Preparamos os presentes, eu e Halley. Na obra, Felize e Bô me ajudaram a escrever um cartãozinho em francês. Pra que todos me entendessem tive que escrever em francês, inglês e português. Mão de obra danada; só faltou Lingala! Marcaram para as quatro e meia. Cheguei às cinco e meia e já tava todo mundo calibrado. Dei de presente um lenço de cabeça, um lencinho de bolsa e uma fita cassete com a música Analengo. E o cartãozinho: “Dans la vie, quand une porte se ferme, une fenêtre s’ouvre… et par les fenêtres ouvertes le ciel est plus beau et la terre plus grande. Qu’il ne soit pas immortel, puisqu’il est flamme, mais qu’il soit infini pendant sa durée” (Carlos Drummond de Andrade et Vinícius de Moraes, a propos de l’amour). Como veem, fiz o melhor que pude. Meu amigo Hélio Gaúcho é que dizia: “conquistar, seduzir, possuir, difamar e abandonar”, hehehe.
No aniversário ela segue um ritual. Põe na cintura, coladona ao corpo, a cinta de pano com que foi carregada na infância. Diz que se sua tante aqui estivesse, carregá-la- -ia no colo, nem que fosse por um minutinho. Bota aquilo trinta dias antes do niver. Só tira um mês depois. Não tira pra nada (nem para tomar banho? Pra essas coisas sim, e pro fuck – fuck, hahaha…). Tudo planejadinho. Na sala, os convidados e a mesa com os presentes. Que não são abertos na hora.
Bebeu pouco antes da festa.
Cardápio (serviço à americana)
Liboke de frango (frango com mbika);
Singe (macaco) ao molho;
Poulet à la Mwamba de Noix de Palme (dendê) – nossa moqueca de frango;
Saka-Saka (folha de mandioca brava);
Peixe ao molho;
Piri-piri à vontade; e
Banana Pilée (lituma).
Bebidas antes
Martini
Cerveja (Primus)
Uísque ( o malfadado Jack Daniels)
Malavo (o mesmo maluvo angolano, um pouco mais forte)
Orange Juice
Suco de Grapefruit.
Uns tira-gostos. Todo mundo conversando, ouvindo música… Omari perguntou-me a que horas deveriam começar a beber: 18 horas. E a servir a comida: 19 horas. Não sei por que me perguntou hoje. Nunca perguntara.
Estavam presentes o médico, Ronald Marsh, e sua mulher (uma negra bonitona), Bô, Nsiala, Makonda, Halley, Nsuzi, Sophie, Hélène, Julienne (as duas), a baixinha tesuda, uma mulata clara, não sei de onde, que veio com Andy e um cumpincha americano, com bebida pra cacete e um igloo cheio de gelo, e mais um monte de gente.
Depois de muita zoeira, já no final da noite, Monsieur le PDG da Astaldi comunica aos que ainda ficavam de pé que “Kiff-Kiff Internacional convida os presentes para tomar um engradado de cerveja”. E fomos para lá. Dançamos e bebemos a noite toda.Ao engradado, seguiu-se outro. E outro. “À santé du kokoxá”, vem brindar Honorine, com duas garrafas de Johnny Walker debaixo do braço. Andy saiu com sua trupe, muito de porre, dizendo que vivia há sete anos naquela terra, que era hora de voltar pro Havaí, e o doutor reapareceu com a mulher (todo mundo pra lá de Bagdá, esse doutor ainda vai perder a mulher por aqui). Bebemos e fomos pra Pergola. Dançamos paca, muita confusão.
Durante a comilança, fotos de todo mundo, e o pessoal chegava perto de Omari e lhe enfiava dinheiro na cintura, nos seios, em toda parte – cadeau para Marthe, cadeau, ma soeur, hélas! – Felize deu 20 Z$ novinhos, que eu troquei com ela para minha coleção. Depois do início, as mulheres de casa convidavam os homens a se servirem – as crianças tinham comido antes –, e em seguida as convidadas. Foram para a cozinha e passaram a comer todas num mesmo panelão. Enfiavam as mãos e não queriam nem saber. Aí, trocaram de roupa e continuaram a beber e a dançar. Agora, músicas que tocam mais fundo no pessoal. Nsuzi, Julienne e Hélène começaram a cantar em coro uma de sacanagem (Ishimama) e a baixinha tesuda, que só me chama de mindele, acompanhava a música fazendo gestos de mão no peito, mão na cintura, mão na bunda, como se ela fosse uma oferenda, e acho que fazia parte da coreografia porque depois todas as mulheres imitavam, e até iam mais fundo (mão naquilo, aquilo na mão…). Na Maison e no Kiff-Kiff uma música cheia de salamaleques, que Hélène gostou muito e Nsiala também.
Ainda na Maison, a baixinha tesuda, a mulata que veio com Andy, Nsuzi e Hélène vinham correndo, levantavam a saia, se ofereciam e, quando iam agarrar, elas voltavam rápido. Às vezes quase conseguiam pegar, mas as mulheres se desvencilhavam, rindo, gritando, indo e voltando. Parecia festa de ninfas e sátiros (e de Baco, evoé!). O interessante é que na hora, a mim, me pareceu tudo bem natural. No Kiff-Kiff, a turma bebeu o resto do juízo. Dancei discoteque com quem? Hélène ou Marthe? Depois teve uma música que levou todo mundo a cair no chão, deitados uns sobre os outros. Eu em cima de Sophie, com Marthe sobre mim. Dali fomos para o Pergola, com Ronnie e femme (esse cara ainda perde essa mulher), eu já bem zuado, Hélène completamente ligada. Um coro formado por Julienne, Hélène, Nsuzi e a baixinha invocada cantou outra música, esta bastante triste. E outras, bem locais. Olha que disseram estar maneirando: no dia seguinte seria aniversário de Andy (no dia seguinte?).
Saímos eu e Omari – o dia raiando e ainda ficou gente –, pegamos tartaruga com mbika e dois orange juice na Maison e levamos pro meu bangalô. Comemos, conversamos, trepamos, não brigamos (miracle!). De manhã, levantei cedo, bem disposto, ela foi pra casa, eu pro restaurante da obra. Branchei – era domingo, voltei e dormi de novo.
Acordei com as mulheres da Maison no Camp fazendo comida na casa de Andy. Porra, esse povo tem um pique! Carne de cabrito (chèvre? mouton?), arroz, etc.
Comeram, deram uma morgadinha e vieram para minha casa. Marthe, Sophie, Julienne e Nsuzi. Estavam excitadíssimas, dançando uns cassetes que trouxeram. Questionam essa minha mania de querer as letras das músicas. Acham que é mais fácil eu aprender de boca e levar a gravação orquestrada. Têm certa dose de razão. Passou pela minha porta um americano que dificilmente vejo – acho que só trabalha à noite. Ele se parece com o Homem Borracha, lembram? Olhou pra dentro e falou o nome de Alton Snell e mais alguma coisa que (parece) ninguém entendeu. Aí Julienne (ex- M. Snell) respondeu “você não tem nada com minha vida, cala a boca, se não te quebro uma garrafa na cabeça”. Aí ele disse “calma, fui muito amigo de seu marido…” E caiu fora. Essas mulheres são foda…
Aqui em casa ficaram quase uma hora discutindo em voz alta o preço de uma foda em Matadi… se Beatriz – amiga de O., que não conheci – está se fudendo ou não… Sophie diz que, dormindo no mesmo quarto, viu seu primo comendo a outra prima. Discutiram se era certo ou errado. Marthe estava com Tony no braço. Ficou invocada e disse que Sophie não podia se recostar na minha cama, perto de mim. Aí voltaram para a casa de Andy e fui dormir.
Segunda-feira, 17 de agosto. “Sensação estranha, bastante ruim no geral. Como sempre, ocorre quando penso que O. está me traindo. O peito opresso, vontade de nada fazer, não é tristeza, não é medo. Simplesmente indescritível. Tento dormir, não é possível. A alimentação tornou-se difícil. Além de essa comida de americano não me apetecer – não consigo me acostumar com esse negócio de ter que botar o tempero depois de tudo pronto – ainda tem este des-gosto. Tudo a ver com o mês. É delicioso vê–la, mas confrange-me o coração. Não sei o que é pior, vê-la ou não. A produção literária se dá a duras penas. Sinto que o fundamental para mim é recusar-me a vê-la. Mas imagino que acabará doendo mais ainda. O pior é que já descobriu esse conflito e sabe que minha ideologia expressa me leva a nada poder fazer contra sua vida airada. É livre. A recíproca não é verdadeira. Usa cada minuto da sua vida controlando a minha e ameaçando as mulheres que pensam em me procurar. E esse negócio dá certo, comigo e com as outras, que morrem de medo dela. Sente-se dona da situação. Diz que me ama até a loucura; faz, normalmente, o que bem entende, impede-me de amar as outras e às outras de me amarem. Sofro profundamente com esse estado de coisas. Que espírito fraco este meu, que nem se entrega a essa paixão idiota nem dá um basta numa situação que, por enquanto, só a mim prejudica.
Por que esse beco sem saída? A distância da minha terra? O tamanhinho de Inga? A força que tem esta mulher? A ruganga? A comida (as duas) boa (s)? e de graça? A integração social que traz essa situação? A exiguidade de tempo? Onde desembocará isto? Por outro lado, sinto que existe algo de profundamente falso nela (onde estará o “furo da bala”?). Não consigo descobrir o que é e penso que só o farei no desenlace. Hipóteses (não em ordem de possibilidade real):
1. Quer ter um filho meu, com todo o potencial de pressão decorrente que, parece, ela já tem experiência em utilizar;
2. É extremamente violenta e ligada, atavicamente, a um desenlace de tragédia. Se concluir que é uma mulher da vida, e que as pessoas a quem ama a consideram uma reles prostituta, num momento de cólera e depressão (fiz com ela o teste das cores, de Lüscher; deu preto = coartação e vermelho = liberação violenta) pode matar a si e, antes, a mim…
3. Sente muita atração pelo mundele de uma maneira geral e pelo branco em particular, o que é comum no africano. Atração feita de contradições repentinas. É perfeitamente compreensível o caso do africano que convive durante anos com o branco, numa atmosfera de admiração, submissão, hospitalidade e gentileza e, de repente, junta-se a outros e promovem uma chacina sem sobreviventes (vide Lukula, Kolwezi, Kindu, Kissangani e outros lugares que ninguém de fora sabe, só o pessoal daqui, que evita comentar essas coisas). E ela vem, confraterniza, ama, trepa, chupa, dá comida, dança alegremente… até onde isso é neurótico? Este meu constante perguntar “onde está o furo da bala” até que ponto encontra respaldo na realidade? Haverá um surto, no qual ela me comerá? Está comigo só enquanto não há um branco trepável dando sopa?
4. O inconsciente coletivo, a anima de Rebeca, a mulher inesquecível? A reprodução do Império dos Sentidos?
5. Ou simples processo de sedução e chantagem emocional, com pequenos (penso, pelo menos até agora) ganhos financeiros, que espera se tornem maiores. Neste caso, sabe que tem de aproveitar ao máximo [sexo e dinheiro (?)] já que, afinal, não é mais tão nova, e a facada final está sendo preparada;
6. Tudo isso que imaginei, agrupado em ondas com intensidades variando dia-a-dia, dependendo da interferência momentânea de um hemisfério sobre o outro?
7. Não é porra nenhuma disso e estou delirando!
Na verdade, acho que as hipóteses mais prováveis são a cinco e a sete, com algo da quatro. De qualquer forma, vou pagar para ver, só se vive uma vez (você sabe do seu destino, Riobaldo?). Vou transar com outras mulheres, trepar com ela quando me der na telha e procurar, desesperadamente, eliminar esta bola no meu peito.”
Num filme dos anos 60, o cara achava que certa mulher só não poderia ser considerada uma impostora completa porque era uma autêntica impostora, hehehe… Preciso escrever para João Bosco e para a Bene, de qualquer forma. O violão é a resposta: melhor só doce de abóbora com coco.
Terça-feira, 18 de agosto. Fui jantar com O. Antes passei no Boule Rouge para tomar um uísque e saber das novidades. O americano com cara de chinês, topógrafo, quebrou o vidro da casa de Andy com um soco e foi parar no posto policial, junto com Nzusi. Parece que os dois sabem muito bem qual é o problema, mas ninguém mais sabe. O. diz que o problema se chama marijuana. E que Kowalski, outro americano lá, que, parece, não tem nada a ver com a história, já foi uma foda disputada em Inga (deve ter sido por ela, inclusive). Agora parece completamente pirado. As mulheres nunca sabem o que pode acontecer com ele, na cama (estas mulheres de Inga, também, só pensam nisso!). Outro americano, Lone, saiu no pau com Nungo, o dono do Skons. Esses americanos são meio malucos, mas não se pode dizer que Nungo seja flor que se cheire. A filha mais velha dele, Micheline, teve um caso com um alemão da Siemens. Moravam na mesma casa, porém ela saía e dava pra todo mundo. Um dia ficou grávida. E Nungo pediu 15.000 Zaïres adiantado na Justiça. O alemão disse que só pagava as despesas com o parto e se a criança se parecesse com ele, aí sim, tudo bem. Nasceu, indiscutivelmente preto. E olha que Micheline era assim pardavasca. Foi uma consternação geral na ex-futura família germano-zaïroise. Acabou a história da grana e Micheline ficou proibida de entrar no clube alemão.
Pascaline Pratt: viu-me no Boule Rouge, flertou bastante, chamou Honorine e disse que tava a fim de trepar comigo. Honorine contemporizou, disse que eu já era de outra, pra deixar aquilo de lado. Brigitte disse que se ela me pega, adeus Rodriguês, porque essa mulher trepa pra caralho. Tomou um namoradinho dela, tem um filho do kokoxá e mora em Matadi. Opa, preciso conhecer (biblicamente!?) essa mulher.
Marilène, a mestiça da festa de O. perguntou a esta se tinha problema se quisesse dormir comigo. O. respondeu que sim (não podia). Aí ela perguntou: pelo menos ver vocês fazendo na cama, eu posso? O. disse que não, mas que ia pensar. Ficaram as duas conversando sobre como identificar o tamanho dum cacete pelos parâmetros externos. O. afirma que é pelo tamanho do pé, mas Marilène diz que o tamanho do antebraço apresenta menor erro. Entro no assunto achando que o tamanho e forma da xota é mostrado pela boca. O antebraço, na mulher, dá uma ideia da coxa. Acharam válida minha teoria.
Histoires d’O. Escreveu rápido em francês e Swahilii, noite passada. Juntei umas coisas com outras e deu nisto:
“Nasceu por volta de 1952-54, em Kindu, Kivu, sub-região de Beia, no Leste do Zaïre, filha de um senador, Omari Pene Missenga (ex-Stanislas), que tinha perto de trinta esposas. Sua mãe a entregou para a concubina principal (la tante) e partiu para outra. Acabou se casando com um médico, com o qual vive em Kinshasa, junto à filha mais nova, de 15 anos. Entre 65 e 70 estudou em Kin. De 70 a 73 esteve num convento em Bukavu, próximo de Rwanda. Em 74 ou 75 voltou para a capital, onde se instalou em definitivo, intermitentemente estudando e trabalhando no boteco (ou pensão) de uma tia ou como atendente no Centro Telefônico. A primeira filha que teve é de um togolês. O segundo filho, Antonio, é de um ruandês. Chama-se Antonio em homenagem a seu cunhado, marido da irmã Françoise (eu o conheci em Kinshasa, responsável pelo hotelzinho da CIS, um italiano gente boa, Tony Furio). Aos 14 anos, um irmão, oficial de chancelaria, a chamou para sua residência de verão (antes já andava fazendo umas sacanagens, pegando nos peitinhos, etc.) e deu-lhe uns uísques. Quando ela disse que estava com sono, ele buscou as rendas brancas do dia, colocou debaixo, foi lhe tirando as calcinhas e acariciando toda. O. disse que estava gostando das carícias, mas quando viu o cacete, ficou com medo. O irmão pôs assim mesmo, tudo de uma vez. Doeu, ela não sentiu prazer, entretanto ainda tinha desejo (j’ait envie, José). Foi para casa, não contou pra ninguém (se conta, o pai a casava, e ela não queria casar ainda). Ficou pensando no cacete, na residência… e virou freguesa. Para não engravidar, virava de bruços e provocava convulsões até expulsar o esperma (huuum, até parece…). Quando ele foi visitá-la em Bukavu, abraçaram-se, apresentou-o à Madre Superiora como irmão e saíram para trepar (no pátio do convento? Na floresta?). Depois que voltou a Kin, ainda trabalhando com a tia, viajou a Goma, lá deu uma trepada e engravidou. Na volta, esperando a menstruação, acabou abortando de três meses, quase morrendo de dor e consternação pelo filho que não nasceu. Convidada por uma amiga para dar umas trepadas na embaixada do Togo, um estudante de planejamento abandonou a amiga e começou com ela. Começou, gostou e prometeu casamento. Foram passear não sei aonde e, quando voltou para a casa da tia, estava grávida de sete meses da filha que hoje tem três anos (nasceu em junho de 78?). Ele foi para o Togo, sem saber da gravidez. Havia parado de estudar para ficar com o togolês e estava desempregada. Este voltou e pediu-a em casamento. Não quis. Diz que teve medo, por dois motivos: o primeiro é que trepava muito com outras pessoas, e ele morria de raiva, chegava a chorar por não poder fazer nada, já que temia seu temperamento violento. Achou que se fosse para Lomé e continuasse fazendo a mesma coisa ele ia bater nela todo dia. Ou matá-la (Il pensait en me tuer, José). O segundo motivo foi que, segundo ela, na África, a esposa quando entra na nova família tem que trabalhar pra cacete. No campo, plantar e carregar a colheita; em casa, arrumar e lavar a roupa de todo mundo e cuidar de criança. Ainda dividir o cara com as concubinas. Como jamais gostou de pica regrada, do trabalho pesado de casa (parece algumas pessoas que conheço) e, pior ainda, do campo, falou: “Não caso e nem vou para Lomé” (ou casou, e eu andei misturando as coisas). Essa é a história que contou. Não sei quanto tem de fantasia. Acho que tem de dar um desconto aí duns 30 por cento. Depois que a filha nasceu, deixou a mãe tomando conta, retomou os estudos, entrou na sacanagem direto e virou femme libre, trepando com os estrangeiros de Kinshasa e frequentando boates. Aí, conheceu um ruandês, estudante também, que voltou a seu país. Este lhe escreveu contando como fazer ruganga; foi lá, experimentou, gostou e casou com ele (foi com este ou com o outro? Casou-se foi com o togolês, com este é que foi para Bukavu, e viveram um tempo lá), foi para Kigali e andou dando umas trepadinhas pagas por lá, principalmente com zaïroises. Aí nasceu Antonio (maio de 80). Quando estava grávida de uns sete meses já andava por Inga. Diz que desde 79 não fazia ruganga, e que passou quase um ano sem trepar, até ser aconselhada por Françoise a partir para o Bas-Zaïre… Após o nascimento de Antonio, passou a fazer um levantamento sexual de campo em Inga. Terminou por preferir os belgas. São mais carinhosos, responsáveis, liberais e soltam mais grana. Quando a conheci, estava com um sueco, apenas para diversificar o mercado. Gaba-se de que nenhum zaïroise de Inga (os que vêm de Kinshasa, sim) pode dizer que conhece sua nkuma (e aponta, aqui…). É, realmente, uma mulher do caralho!”
Virou o ano. Entramos em 82. O clima político azedou. Rebeldes por todo lado. A obra está em banho-maria. Eu e O. em Moanda. Ontem, 1º de janeiro, festamos bastante. Nsiala, Kassongo, Makonda, a tante, Honorine… Bebemos paca, depois fomos ao Camp Kinshasa, à casa de Marie x Rose, e jogamos cerveja pra cima. Um barato. Bebemos um engradado de Régla e dois engradados de Primus (deveria ser o contrário, essa Primus é horrorosa! mas bem mais barata). Na festa da virada de ano eu estava insuportável. Enchi o saco de O., que por sua vez estava mais puta do que nunca. Brigou com todo mundo, flertou com todo muzungo que aparecia… pedia às pessoas para pagar coisas… Concluindo que não era noite pra nós juntos, fui para casa dormir. Ela continuou na festa. Daí a duas (?) horas pintou no Camp. Bateu na porta; como não abri, dormiu na caminhonete. Não tinha água dentro de casa. Quando levantei de manhã, fui lavar o rosto na torneira do gramado e deixei que entrasse. Bati nela. Diz que queria era isto mesmo. Desde o início da festa. Queria apanhar em público. Com toda a Inga vendo. É o fim da picada. Digo que prefiro bater em privado. Rasguei seu vestido e ela falou: agora tem de pagar, 1.500 Zaïres. Ponderei que era caro. Aprés eu disse: eu pago. Aí ela disse: não precisa pagar.
Durante o dia saímos de carro, um monte de gente na carroceria. Passamos em frente à casa de um crente: Bonnes Fêtes, Kabeiaaa…
Agora, à noite, no Hotel Dano, em Moanda, atendimento difícil. Saímos e baisamos no Makide – Motel Dancing Club. Banheiro do lado de fora, mas tudo legal. Voltamos.
De Pessoas, Chaves e Moqueca de Gente
Quando morre um grande chefe no Haut-Zaïre/Kivu, alguém tem que ser enterrado junto com ele. Seu capitães vão ao village e matam uma turma. Há velhos que se apresentam voluntariamente (para reduzir a idade média da população, foi o que entendi), mas tem que ter uns mais novos. Eu, hein? No Bas Zaïre escolhiam uns escravos para serem enterrados vivos com o chefe. E tinha escravo que reclamava da honraria, vê se pode!
O negócio da língua por aqui é muito estranho. Não tem muita lógica, mas faz certo sentido. Mayombe, Mwyombe, tudo é pessoa negra; Bayombe são vários negros. Mas não há Bwyombe! Mindele, Mundele, tudo é branco – ou brancos –, porque não há Bindele ou Bundele. Analogamente, Mobutu é Mongala, da tribo dos Bangala, que fala a língua Lingala. É, parece razoável. À medida que o tempo vai passando, vou misturando as línguas, Francês, Português, Lingala, Inglês, Kikongo… E, junto, minha personalidade vai mudando, da ambiguidade africana ao utilitarismo norte-americando, com traços do cinismo europeu e relativo descompromisso brasileiro, particularmente carioca.
If you come across a white man and a snake, kill the white man first (ditado queniano; o pessoal pegou pesado em cima dos ingleses, hein, Rapoz?). Na segunda, a gente levantou cedo pra fazer o relatório e mandar pro Brasil. Discutimos paca, à tarde ficou pronto. Abrimos um garrafa daquele Beaujolais californiano safado para comemorar. Continuamos os ajustes nas chaves secionadoras. Passarinho é muito alegre e fica o tempo todo cantando. Bird’s nest: traz má sorte tirar do lugar. Jackaré quebrou os ovos e ameaçou devolver Passarinho para Albion. Perguntaram a mim, no alto da chave, passando desoxidante, como é que tava. Respondi, de cara fechada, que não era um serviço altamente especializado. À tarde acharam um gabiranha lá pra acabar de limpar e lubrificar os contatos.
Hoje continuamos a ajustar chaves, e Jackaré deu novo esporro. À noite fui informado por Passarinho que tínhamos de reabrir e reajustar todas as cabeças. Os ajustes do Manual de Instruções estavam errados. Reabrimos e reajustamos. Acho que as coisas não vão bem na obra. O Chefão veio ao pé da chave e me perguntou como eu estava. Respondi: so, so. Se eu queria voltar para o Brasil. Dei de ombros. Não sei qual é a dele. Chegou e voltou para Kin no mesmo dia. Evitou Jackaré, que o procurou freneticamente.
Na terça marquei encontro com Omari e faltei. Fui ouvir música zaïroise no correio com Tubuja, primo de Angelique; ela diz que uma alemã quer gravar meus três cassetes (quer, né, vamos ver o que ela tem para dar em troca…). Marthe apareceu, de repente, e foi entrando. Eu disse que tava terminado e ela disse que se matava, que me matava e matava a outra mulher (sei lá qual), o escambau. Decidi que esta porra não pode mesmo continuar. No sábado seguinte, aconteceu a mesma coisa. Comecei a fotografar umas coiffures authentiques no Boule Rouge, a comer peixe frito e beber uísque, e ela se invocou. Fui para casa. À noite, na Pergola, conheci uma baixinha bem tesuda. Comecei um tititi discreto. Afastei-me um pouco da muvuca, mas essa Marthe é foda. Foi atrás e ameaçou dar um cacete em mim e na baixinha.
No domingo fomos à casa de Bompimbo, comemos juntos uma porçãozinha de moqueca de porquinho-da-índia, bebemos pra cacete e, tarde da noite, falei que tava morto de fome e ela foi pra cozinha preparar comida. Trocou comigo seis notas novas de 50 Zaïres pra eu botar na minha coleção, pediu uma foto e fez questão de frisar que os Z$ não eram dela. No embalo, confessei que a sinto maravilhosa comigo e que não tenho me portado à altura (eu devia estar de porre; outra foi a carta que escrevi para minha mulher no Brasil, dando meu endereço, falando de ruganga, etc.). Preciso parar de beber e de pensar na baixinha tesuda.
Trabalhei sem seguir nenhuma programação, só no improviso. O filho da puta do Jackaré, que disse que ia sair de licença, foi a Kin, adiou e voltou com a corda toda, enchendo o saco. E lá vou eu ensaiar uns trinta transformadores. Começamos, eu e George, nos de potência, com ensaio de relação (sem TTR, sem Megger, sem Doble; meti 440 volts neles e medi do outro lado com um voltímetro safado). A semana toda dando duro. E ressaqueado. Passei para os trafos auxiliares e os grounding transformers. Tudo beleza, menos o óleo, que deu isolamento meio baixo. E valores oscilantes, sem consistência estatística. Deve estar com água dentro. Passei a semana toda trepando e brigando com Omari. Preciso acabar com esta porra . Não estou produzindo nada para minha evolução intelectual. Fiz ensaios no fault pressure relay com bomba de bicicleta; nos termômetros fiz com cuba de óleo e resistência de aquecimento; e relação nos TP e TC com voltímetro e fonte 380/220 volts…(!?) Jeitinho brasileiro in american style: fast and badly done. E ainda dizem que esses caras são mais desenvolvidos tecnicamente que a gente. Puta que paríu!
Ckaré continua criando caso. Disse que eu dirigia fudendo a caminhonete dele (dele? Ué, não é da empresa?). Esse negócio de carro hidramático também é um porre! Ele levanta cedo, dorme tarde, bebe uísque pra caralho, anda a obra inteira dando esporro, mas só em zaïroise e brasileiro. Com americano ele fica pianinho. Tenta sacanear também o George, mas o baixinho é foda, ele é que acaba sendo sacaneado. Acho que americano e canadense têm um trauma qualquer em relação a inglês, não sei o que é isso. Às vezes o filho da puta pega um escocês também pra Cristo, mas é raro. E quando encontra um chefe, bota o rabinho entre as pernas. Acho que esse cara deveria ser eliminado. Peguei meu canivete suíço e pensei em lhe dar uma espetada. No final do expediente passei perto de sua casa no Camp – fica de frente pra minha – e latava ele desmontando e lubrificando um Smith&Wesson novim. Eu, hein, parece que o fidaputa divinha.
Falei disso com o pessoal, Séia, Makonda e Bompimbo. Disseram que ele era um cara poderoso e que cara poderoso e como tal tem de ser respeitado. A gente não pode sair matando assim assim, não. Contaram que, antigamente, na África Central, quando se conhecia uma pessoa poderosa – do Bem ou do Mal – costumava-se matá-la e preparar com a carne uma moqueca bem caprichada, comida por aqueles que desejavam incorporar o poder. Hoje, acabou-se o costume. A alternativa aceita é assumir o nome dela. Resolvi então deixar pra lá. Esse negócio do símbolo é coisa muito séria. Contam que depois da Revolta dos Malês de 1835, em Salvador, uma multidão se formou no local onde os revoltosos iam ser fuzilados, todo mundo querendo passar a mão neles, diziam que para pegar baraka, um tipo de axé muçulmano. Foi um perereco para afastarem o povo e executar a sentença. Por analogia, comer moqueca de gente deve servir também para incorporar baraka.
Marthe, Kassongo e Fala-Fala elucubrando sobre as tradições do Leste, que não são estranhas ao Bas Zaïre, contaram do Umuali, cerimônia em que as jovens, ao terem a primeira menstruação, são levadas para uma câmara onde as tias lhes mostram como fazer para agradar aos maridos. Ensinam-lhes rebolar sem colocar a bunda no leito. Para tal, colocam uma faca espetada debaixo delas, de lâmina para cima, e ficam durante uma hora sem poder se abaixar. Aprendem higiene sexual, como banho de assento, a limpar o cacete do marido após o sexo, etc. Segundo Séia, isso é uma tradição basicamente muçulmana. Marthe, que passou por isto, acredita que a família de seu pai seja de origem árabe-islâmica, tanto que seu nome authentique é Salama. Uma variação sobre o mesmo tema é quando a garota vai casar virgem. As tias dos noivos ficam ao lado do leito ou num quarto contíguo e, quando o sangue espirra, elas enxugam com um pano de seda branca, rasgam em pedacinhos, penduram na testa e sai todo mundo em procissão pela comunidade. E quando não tem sangue nenhum para espirrar? Porra, José, as pessoas, antes de irem pra lá, já sabem se vai ter sangue ou não, né? Mas esse negócio de Umuali eu acho que já vi algo parecido, não me lembro onde.
No dia 15 de janeiro, encomendei um gimrique pra gente comer na Maison. Outra moqueca. Dessa vez des harachides (molho de amendoim). Ficou beleza. Levei uns vinhos e eu, Felice, Bompimbo, Fala-Fala e Marthe nos regalamos. Bebemos paca e depois eu e Marthe viemos dormir. Dormimos legal. Só brigamos de manhã. Ela disse que vai abandonar Mme Snell, por causa do problema dela (Marthe) com Caré (qual problema??), e pra eu não frequentar mais a Maison. Eu disse que não ia fazer nada disso, e ela ficou invocada. Me xingou e saiu soltando azeite às carradas. Preciso acabar com esta porra! Na segunda, ela foi ao Camp Kinshasa e voltou de carro com a gente, meio danada. No mesmo dia comprei a coleção de selos de Kiunga, do NPTZ, a ECT zaïroise, negócio acertado quando ele tomava umas canas na Maison. À noite, eu disse pra ela que só ia vê-la de novo na sexta à noite. Respondeu que tá bom, e que vai preparar um peixe bem gostoso pra mim. É foda! À tardinha fui beber no Makosso e conheci sua ex-posa, com os dois garotinhos. Uma graça. Fotografei um enterro com música, e o manager da cerimônia me deu um esporro. Tá certo ele.
Aproxima-se o final. Noite passada Omari esteve aqui. Chegou bem tarde. Disse que veio cedo e o security do Camp disse que eu já tinha saído (para o chantier). Ela pensou em ir até lá, mas não foi porque, se não me encontrasse, o cara (qual?) ia querer dormir com ela, e que seria obrigada a ficar, porque não ia ter como voltar sozinha. Ficou um tempo esperando (um frio do caralho). Aí, voltou até o trevo com o security e desandou a chorar. Disse a ele pra não me contar nada. Dali, foi ao Kiff-Kiff e voltou pra casa. Dormiu um pouco, acordou, levantou e veio de novo. Chegou, entrou no Camp na raça. Perguntei quem era. Respondeu: Honorine. E caiu na cama em cima de mim. Estava gelada e reclamou cansaço. Acolhi-a (!?).
Passamos uma noite gostosa, se bem que estava muito violenta, me apertando, me unhando e o tempo todo em cima de mim, falando agitadamente. Perguntei se estava assim (folle) porque tinha bebido, e ela disse que era a satisfação de me ver. E reclamou que eu, ultimamente, me comportava como um velho de 50 anos [descobri, assim, como um velho de 50 anos f(az)(ode)]. Retruquei que ela devia trocar (mikoloyo) de gosto. Ela disse não ser o caso, mas que eu devia melhorar meu desempenho. Aprés, ela precisa de um toco. Gemeu e resmungou o tempo todo. Fizemos ruganga, parecido com a primeira vez. Esguicho pra todo lado. Uma maravilha. O peito fica tremendo e não se pode parar de acariciar seus bicos, durinhos, ela de olhos fechados gemendo. Falei que ia dormir, que meu sono andava defasado. Ficou puta e foi dormir no chão, só com o cobre-leito. Um chão frio pra dedéu. E dormiu mesmo, de roncar. Essa mulher é completamente maluca. Depois disse que foi porque falei com ela da enfermeira (Ah, Angelique. As mulheres que desconfiava estarem de caso comigo, só chamava por algum adjetivo, alguma profissão, não falava o nome).
Tinha um passado violento. Contou que uma noite em Kinshasa, morando com Françoise – sua irmã por parte de mãe – e outra coupine, tomou sete cervejas, chegou em casa, tirou a roupa, chamou a coupine e começou a injuriá-la. Desenterrou coisas antigas e partiu pra cima. Meteu-lhe as unhas pelo corpo todo. Em troca – a outra também é do Kivu –, levou uma dentada no pescoço que arrancou pedaço. Foi levada às pressas para o hospital e hoje tem esta cicatrizona. Com umas canas na cabeça ela fica meio encapetada mesmo.
A Maison
Bela e espaçosa casa erguida à entrada da floresta, situada estrategicamente entre a Pergola e o Boule Rouge, a Maison foi destinada ao Mestre Cook Alton Snell, quando se casou com a zaïroise Julienne. Como, na hierarquia dos norte-americanos, o chefe de cozinha ocupa – muito justamente, diga-se de passagem – posto elevado na pirâmide do poder, a casa tinha todos os requintes possíveis overseas. Vários quartos, camas trabalhadas em madeira de lei, lençóis de algodão macio, com bordados personalizados, cristais e talheres de luxo, adega com estoque inesgotável de bebidas – se bem que majoritariamente composto do execrável Beaujolais da Califórnia e de caixas e caixas do letal Jack Daniels – cozinha ampla e bem montada, sala com mesas grandes e poltronas de couro e veludo… Quando entrei no esquema as guarnições de cristal e prata restavam já meio malhadas, mas não deixava de ser um ambiente atraente e agradável.
Não cheguei a conhecer Alton Snell. Sabia apenas que era um negão imponente e que tinha ido aos USA tratar de um problema na garganta, proveniente de um tiro que levou em conflitos de rua no tempo do Black Power – dizem que mantinha um pano vermelho amarrado no pescoço, escondendo o ferimento. A dona da casa, acho que para engordar o orçamento – o dinheiro que chegava da pensão paga pelo americano era incerto e escasso – compartilhava o espaço com várias mulheres, que lhe davam algum dinheiro, compravam comida, ajudavam a pagar uma cozinheira-arrumadeira (Brigitte, novinha e safadinha) e um garoto muito do sem-vergonha que, sob o título de copeiro, fazia compras, recebia visitantes, levava recados e, de vez em quando, comia uma ou outra moradora. Uma menininha, Jolie, de uns 12 anos, filha de uma ndumba de Matadi falecida, passava sempre as férias de fim de ano lá. A comunidade das putas das duas cidades cuidava de sua educação formal.
Além das mulheres itinerantes – algumas das quais, se lembro o nome, falha-me a fisionomia; se guardo o rosto, esquece-me o nome – havia as fixas: Julienne, uma russinha tesuda, sobre quem Marthe exercia vigilância constante; Honorine, com seu lema de que “la vie est beaucoup manger, beaucoup baiser, beaucoup dormir (a vida é muito comer, trepar e dormir), Rodriguês”; La Kassongo, uma mulher parrudona, de bunda grande, que sumia e aparecia repentinamente sem ninguém saber por onde andava; e a Munga, uma coroinha magricela, já fora do mercado do sexo, mas que em termos de diamba era number one, tanto plantava e tratava como vendia e consumia. Além delas havia, evidentemente, Marthe, minha bela Swahilii, e Madame Julienne Snell – gorda, quarentona bem rodada –, com a filhinha, Nguise, na escolinha local já iniciando a alfabetização.
Nsuzi e Sophie, mais novas, iam à Maison apenas em ocasiões festivas, o mesmo ocorrendo com algumas mulheres de Matadi. Já Angelique e Josephine, minhas amigas mais quadradinhas, trabalhavam respectivamente no hospital e nos correios, passando ao largo da vida dissoluta da maioria das mulheres de Inga.
Havia as independentes, como Monique – lindíssima mulher, que trocava de coronel semestralmente –, Chantal, que morava com um alemão, mas vivia afirmando que continuava na praça, e Marie Ngonduka, mãe de família gordinha que “atendia” em casa na companhia dos filhos e de sua inquilina Rose.
Frango na Cerveja
Passei na casa de Bompimbo para acertarmos o negócio do frango na cerveja. Comprei, limpei e deixei temperado. Poulet à la Bière, cozido com com batata, expliquei pra eles. À tarde lá fui eu pro fogão. Enquanto preparava, ficávamos conversando, eu, Marthe, Bô com sua mulher, Séia, Makonda, e Nsiala imitando o americano bêbado: Makonda, if you get problem, call me. I’m Boss here, hehehe… understand? I’m Boss here. (Makonda, se tiver algum problema, me chama. Eu sou chefe aqui. Entendeu? Sou chefe aqui.)
Ficou gostoso, acompanhado de foufou (angu de polvilho de mandioca brava), peixe assado e um arroz muito sem-vergonha feito por Nsiala. Recebi cartas de Norecil, Taquinho, Oswaldo Monteiro, Mariano Ramalho, João Bosco e uma muito boa do Amauri Muniz. Terminou tudo às oito e meia. Fui dormir às dez e, lá pela uma da manhã, pancadinha no vidro do quarto.
Era O., que entrou e resolveu dormir de roupa. Uma trepada, muita conversa, fudeu meu sono. Disse que se ela tinha vindo para criar caso, era melhor não vir. Abro a porta, sou legal, mas, porra, tudo tem limite! Aí resolveu dormir. Antes pediu-me que repetisse: qualquer homem que aparece com dinheiro mete com ela. Criou caso, mas acabou se acalmando. Perguntou, seguidamente, se eu tomasse conhecimento que pessoas de outro chantier, europeus ou outros, estivessem trepando com ela, eu a recusaria (tu me refuse?). Respondi que sim. Ela disse que entrava à força. Eu disse que dava ordem ao sentinela para não deixar que entrasse. Ela disse que entrava no carro de outro morador fingindo que ia ficar com ele e aí vinha para minha casa. Eu disse que isso só dava para fazer uma vez, porque o cara ia contar pra todo mundo. Ela se acalmou, resmungou, ficou de costas, dormiu, mas depois virou-se de novo pra cima de mim e dormiu abraçada com os braços e as pernas me envolvendo.
Ela dormiu, mas eu não. Continua impossível viver com essa porra desta mulher. No dia seguinte fui trabalhar, com muito sono; Jackaré e Passarinho querendo saber onde estive na noite anterior e aonde iria esta noite, onde estão as mulheres, quem saiu de minha casa hoje de manhã, etc. Andam incomodados comigo.
Disconect switches e grounding switches terminando. Preciso acabar logo com os ensaios nos trafos da subestação para começar os da usina. Acho que os gringos estão achando que só quero viver na gandaia. Parece que a África do Sul invadiu Angola, o Kadhafi declarou guerra aos Estados Unidos e o exército de Katanga passou a ser comandado pelos russos, apoiados por soldados cubanos. A linha de transmissão conseguiu chegar a Kolwezi, apesar dos rebeldes… e eu com esse sono danado.
Falei com O. que vinha chegando o momento de começar os ensaios na subestação de Kolwezi. Que talvez eu partisse em breve. Não respondeu nada. É realmente difícil decifrar as mulheres. São tremendamente indiretas em seus processos de análise. Sei lá o que vem por aí.
Quanto à coisa esquisita que espero descobrir, após esta noite e à medida que nos aproximamos de março, o negócio começa a tomar corpo.
Casamento Zaïroise– Perguntou se eu não queria me casar com ela. Citoyenne Rodriguês, diz, hehehe, mas sem muita convicção.
Simplesmente Baiser – Com bastante intensidade, até chegar o dia de terminarmos. Como sempre aconteceu. “Où sont les suédois?” (onde estão os suecos) – gozação de Nzusi em cima dela, depois que passamos a ficar. E a vida continua. Ao trepar, parece que vai entrar em parafuso. Geme: “beaucoup de sentiment, José”. E o corpo todo treme, o grelo fica dando arrancos pra cima…
Obsessão Sadomasoquista I – Diz que sempre que está comigo acorda de madrugada, acende a luz e fica a me regarder. Fala: “quelque jour j’irais – tum – te tuer”, e me agarra pela garganta. Em seguida começa a me acariciar (no devaneio e maintenant). E termina: se você quer realmente me dar prazer, deixe-me mordê-lo, sem me taper après. Arrancar um pedaço realmente! Aí você tem de sair para tomar uma injeção anti-tetânica. “Après je vais pleurer beaucoup”. Eu, hein? Parece que esta é, realmente, sua grande obsessão!
Obsessão Sadomasoquista II – Um dia ainda vou te matar. Minhas amigas têm desejo de trepar contigo. Vou dizer que pode, desde que seja na minha frente. Quando eu vir seu mbolo entrando nela, eu corro e arranco fora, com testículos e tudo. Você não vai resistir e vai morrer. Eu também porque eles (os policiais) vão me matar. Vou desgraçar minha vida.
Obsessão Sadomasoquista III – Deixe-me te comer (je vais te manger). Serei a mulher mais feliz do mundo se você me deixar arrancar um pedaço e comer. E chupar o sangue…
Obsessão Sadomasoquista IV – Pode me bater, mas não me deixe marcada. Os amigos vão dizer que eu brigo muito (je me battre beaucoup). Vão dizer que me bandi.
Obsessão Sadomasoquista V – Diga para mim como você transou com a enfermeira (Angelique). E Monique. Onde vocês ficaram a primeira vez? E a segunda? Eu disse a Sidoni, se você deitou com Rodriguês vou cortá-la todinha de gilete, e vou encontrá-la seja onde estiver, porque eu te apresentei e você fez tudo pra trepar com ele…
Outras Questões – Posso mandar minha petite soeur, Mélanie, para estudar no Brasil? Não vai querer baiser com ela, hein? Quando eu ficar en colère, meu coração vai disparar e eu terei que ser imediatamente hospitalizada. Que será do meu pequeno Antonio e de minha filha em Kinshasa? É o que acontece comigo quando você diz que não me quer mais. Se você diz que vai embora, no problem, mas se tu me refuse, c’est vrai. Você tem desejo de ver outras nkuma. “Vem cá. Hoje você está obrigado a comer nkuma o dia inteiro” (e mete minha cara na xota molhada).
Oscilações Internas – Virar irmã de caridade, no more baiser, fazer o secretariado em Kinshasa. Ser estuprada por cinco americanos e acabar hospitalizada. Ir às boites de Kinshasa e baiser com todos os belgas. Ser tratada com gentileza e receber dinheiro do mundele. Terminar seus dias com Antonio, quando for abandonada por sua grande soeur, Françoise (!?).
V
O Princípio do Fim
Entre l’ami et le frère
Le choix est clair
(Mobutu, sobre a guerra entre
israelenses e palestinos)
O segurança do Camp veio com esta: “Rodriguês, eu te gosto muito, muito. É preciso cuidado com as mulheres livres do Zaïre. Se não te cobra no ato, depois ela te cobra em dobro. É só te levar na Justiça e você tá ferrado. Abre o olho!” Respondi que não era só no Zaïre. No mundo todo é a mesma coisa. Mas, por via das dúvidas, fiquei ligado.
Revendo meus apontamentos, concluo que foi nesse momento que senti a chegada da tempestade.
“Ontem (sem data anotada), pediu-me 150 Zaïres, mais um peixe e a nota nova. Como dizia minha mãe, começou a ‘melódia’. Achei muito (será que quer tirar o atraso?).
Hoje fui à Maison comer um pedaço de peixe com cerveja e acabei perdendo a fome. Cheguei sério e disse: ‘Temos que conversar sobre nossos affaires’. M. said: ‘Which affaires?’ I began a falar sobre débitos e créditos, que se eu desse 150 Zaïres eu já estaria perdendo $. Antes disso perguntei: qual é o seu meio de vida?
‘Por que você quer saber?’
‘Quero saber!’
‘Não se preocupe com minha vida. Diga o que você quer’.
Aí entrei com um negócio de receitas e despesas. Comidas e fodas contra presentes de aniversário e gastos com fotografias, bebidas, viagens, etc. Que não podia sustentá-la e que devia se virar sem esperar nada de mim. Olhou-me então com desprezo e disse: mundele é tudo a mesma coisa. Antes, perguntou de onde havia saído esta ideia e quem me sugerira isso. Respondi que eu mesmo tinha bolado.
Ficou resmungando, dizendo que tinha quem lhe vestisse (um zaïroise, e mesmo estrangeiros), que não precisava dos $ de ninguém e que desembolsara em Matadi, com ela e a irmã mais velha quase 500 Zaïres por problema de tribunal (prostituição?). Aí se exaltou um pouco, pegou uma folha de papel e escreveu: eu, citoyenne Omari Marthe, nascida no Kivu, sub-região de Pongi, declaro que jamais criarei qualquer problema para Rodrigues, Eustáquio José. Dado e passado aos 17.02.82, Inga. E assinou. Rabisquei aquilo tudo e ela rasgou e jogou pela janela. Ficou olhando para minha cara. Falei: bom, é o que eu tinha para dizer. Olhou-me com desprezo: essa história toda é por causa dos 50 Zaïres que te pedi para pagar o peixe? Respondi: 50 não, 150 (falei ou só pensei?).
No sábado pediu-me 1.500 Zaïres e disse que era melhor dar, senão seria pior. Perguntei como seria pior e ela disse que era normal no Zaïre. Um homem tem de pagar pra trepar com uma mulher. Até o Mobutu paga. E tudo deve ser pago de uma vez. Neguei de novo, já tinha gasto o que podia com ela. Perguntou sarcasticamente se eu estava pensando que era 100, 150 Zaïres. Pediu-me então para escrever que não queria dar. Escrevi. Não tenho e não quero dar dinheiro para O., Rodrigues, Inga, 26.02.82, ou algo assim.
Saímos. Convidei-a para irmos ao Boule Rouge. Recusou. Fomos ao Kiff-Kiff, eu me sentei, pedi licença, levantei e fui ao Boule Rouge tomar um uísque. Entrei, pedi e fui dançar com uma Mayombe que estava no balcão. Aí chega M. Olhou e não gostou. O ambiente ficou tenso; pegou um copo, encheu de cerveja, eu dançando e olhando, ela falando alto, todo mundo em silêncio, a música tocando e ela ficando cada vez mais alterada. A música terminou, a Mayombe passou e (só depois eu soube) disse em voz baixa, pace! (sofre!). Aí, M., que já vinha ao meu encontro começou a esbravejar em Lingala e Swahilii. A Mayombe não baixou a cabeça, e partiu pra cima gritando em Kikongo. Pronto, a Boule Rouge toda inflou, uma zona danada, as duas gritando e as pessoas, umas querendo acalmar, outras querendo ver o circo pegar fogo, umas a favor da Mayombe e outras pró-M. Eu puxava M. pra sentar e ela forcejava pra levantar. A Mayombe encostada no balcão, olhando com ar desafiador. Foi quando fiquei sabendo que era a mayombe Pascaline, ex-concubina do kokoxá M. Pratt, o PDG da Siemens. Ah, a famosa Pascaline Pratt. Um mulherão, benzodeus! Pedi um uísque pra ver se o negócio esfriava, mas não deu mesmo. Saí com M. de lá. Antes, veio um babaca dizer pra mim que no Zaïre, se a gente estava com uma mulher, não podia dançar com outra (muito gozado ele, depois deu-lhe uma cantada na rua, em Swahilii. Esses caras de swahilii estão sempre cantando Marthe, bem do meu lado! Como não entendo muito, ela, às vezes, traduz para mim).
Fomos andando pela empoeirada estradinha que dava para a Maison. E ela zoando nos meus ouvidos. Eu à frente, com a boca bonita de Pascaline na cabeça. De repente pulou em cima do meu pescoço, unhando e mordendo tudo que encontrava. Curvei o corpo e ela ficou dependurada. As unhadas eram fracas, as mordidas não eram para arrancar pedaço, mais para dar uma doída e assustar um pouquinho. Segurei-lhe os pulsos bem junto a mim e pam!, caí de costas com ela pendurada. Sua bateu no chão e fez tuc!, igual a um coco seco que quebra. Ficou quieta, sem nenhum movimento, como desacordada. O pessoal veio correndo acudir (cambada, enquanto ela tava me unhando, tudo bem, né?) (mas eu também fiquei preocupado com ela). Abracei-a pra levantar, revirou os olhinhos com ar machucado, como quem diz, você quis me matar. Dei-lhe um beijinho carinhoso, levei-a para dentro da casa e fiquei cuidando dela. Realmente, tava com um galo do tamanho de um ovo de galinha. Pela primeira vez transamos na Maison. Ruganga e esguicho, sem cortar a dela ( o que é difícil, pelo menos para mim, que tenho de segurar seus ombros, movimentar a Pika e ainda lhe acariciar os seios).
No dia seguinte, fiquei olhando Jackaré mexendo nas baterias, ajustando a carga profunda e a flutuação, carregando e descarregando, trocando eletrólito, lavando elementos, revendo as plaquetas das chaves dos gabinetes, medindo tensão por elemento… O especialista sou eu, mas não é que o xereta conseguiu fazer direitinho o serviço? Na segunda-feira vamos começar nas secionadoras de 500 kVdc. Andei estudando o trafo grandão durante a semana e acho que já dá para começar neles também. Não ando muito bom para trabalhar. Será que é a fudelança? Nem trepo muito, mas em comparação com esses americanos que vivem a perigo até que é demais. Aliás, eles precisam mesmo é de castidade. Pra levar adiante uma obra deste porte, abstenção é altamente salutar, né não?, hehehe .”
Bo veio falar baixinho comigo: Rodriguês, precisamos conversar um assunto sério. Ckaré chegou para falar sobre Julienne. Bo desconversou. Eu também (cortamos o assunto, mas depois, quando contei a M. sobre o interesse dele por M. Snell, ela me perguntou se ele falava alguma coisa a respeito dela mesma, e eu disse que não). Makonda também anda meio diferente comigo. Na saída da obra, Bo, Makonda e Nsiala se acercaram: “É sobre você e Marthe. A Communauté acha que vocês estão indo longe demais. Estão perturbando o ambiente.” “Bem, e daí?” (é sobre a confusão no Boule Rouge, pensei). “Vão fazer uma Fundação para você.” Eu não sabia o que era isso, mas coisa boa não poderia ser. “A que horas vai ser?”. “Agora.” “Agora? Não tem uma preparação, nada?” “Não. Vamos lá.” Pelo jeito, ia ser complicado. Fomos andando emparelhados, eu com as mãos nos bolsos, aparentando tranquilidade.
Entramos por uma estrada de terra, por trás dos barracos de tábua, mais ou menos na altura do Makosso. De repente, umas arvorezinhas, uma cerca do que pareciam folhas de pita, secas. Passamos por um portãozinho baixo, um terreiro de terra limpinho, e entramos numa casa fresca, fracamente iluminada pela luz do dia. Assentado num trono de palha trançada, um senhor de barba e cabelos brancos, ar simpático. Numa almofada do lado, pequena para ela, uma senhora gordona. Nunca tinha visto nenhum deles em Inga. Na obscuridade, ao fundo, Marthe. Quando entrei estava de cabeça baixa, e assim continuou. O velhinho tinha, a seu lado, equilibrado numa base de sisal, um cetro comprido, nas cores vermelha e beije claro. Um cheiro próximo de alfazema no ar.
Aos poucos fui lembrando da minha juventude e do padre Joaquim Num Sei das Quantas. Aquela porra parecia… era uma Fundação!
Completa. Nsiala na acusação, Bompimbo na defesa, Fala-Fala de bananga.
Começou. Nsiala discorria sobre a situação em Kikongo. A gordona indicava quem deveria falar. O velhinho intervinha brevemente, em Swahilii (pelo jeito, era para que eu não entendesse mesmo). Marthe fez seu depoimento, de forma teatral, às vezes chorava, outras vinha, me dava um beijo, chegava perto do trono, sorria. Em determinado momento, abaixou-se perto de onde estava sentada e levantou uma espécie de facão comprido com a ponta larga, achatada, em forma de foice, grosso, amarelado parecendo de osso. Rodou, balançou a peça prum lado e pro outro e sentou. O velhinho baixou a cabeça, com reverência. Bo virou pra mim e falou: a coisa tá feia, Rodriguês. Nsiala voltou a discursar, sempre apontando para mim. A gordona se acercou e me olhou nos olhos. Foi-se, de cabeça baixa. Bo coçou a cabeça: tá ruim, Rodriguês. Perguntei pra ele: por que todo mundo fala e só eu e você não podemos falar? Calma, o negócio não é quem fala mais. E a coisa foi, foi, eu sentei um pouco. Bo perguntou um negócio pra Fala-Fala. Voltou. Fez uma careta como quem diz: estamos mal. Porra, mas por que não me defende?
O julgamento foi chegando ao fim (e só eu é que era réu?). Fala-Fala fez um longo discurso. Apontava para mim, para Marthe, vinha, levantava o facão-machadinha, dava uma voltinha mostrando para as pessoas e continuava falando. Fim. E daí? Saímos. Fomos todos para a Maison. Menos o velhinho e a gordota. Que receberam um pacotinho das mãos de Nsiala (dinheiro?) e ficaram lá assentados. Perguntei para Bo se deveria me despedir deles e Bo achou que melhor não.
A Maison estava nos trinques. Mesa posta, copos, vinhos nos baldes de gelo, muita cerveja na geladeira – Règla, a boa cerveja belga – frango e peixe aperitivo, mbika (semente de abóbora)… Fui à cozinha, gimrique assado, peixe à la mwamba, arroz, lituma (banana de vez amassada com farinha de mandioca e tempero agridoce, levada ao forno em folha de bananeira, muito bão). Eita, que festança! Muita gente de Swahilii. Fala-Fala veio me abraçar. Nsiala também, na maior cara-de pau. Falei com ele, você não era da acusação? Ah, Rodriguês, eu te acusei de amar Marthe demais, ter muito ciúme dela, ter espírito de mongali… nada que seja crime aqui no Bas – Zaïre. E com Fala-Fala: por que só deu voz à acusação e a Marthe? Afirmou não entender minha revolta: seu papel era só esclarecer os fatos, não havia nada controverso em relação mim. E acrescentou, irritado: você foi punido? Tá reclamando de quê? Olhei para Bo, no sofá brindando com Julienne, os brancos e saltados dentes a brilhar sob o ouro esmaecido do céu da tarde. Parecia satisfeito com o resultado da Fundação.
Marthe veio com o facão-machadinha, envolto num pano bordado com motivos árabes. Era uma arma poderosa, cabo de marfim, grosso, jeito antigo, lâmina larga de aço, com umas inscrições em Swahilii. Examinei o material. “José, essa é a minha Kimpaba. Foi-me dada pelo meu pai, Omari Pene Missenga, grande chefe coutumier de Béia. Há 600 anos pertence à minha família. Com ela, você tem a chave de todas as portas da África. Em qualquer lugar, será respeitado como se fosse um Big Boss.” E me entregou.
Examinei-a. Não sei o que pensei na hora, mas entendi que não deveria ficar com a arma. Melhor beber e festar. Abraçou-me com ar triste. Não sei se pela recusa em si ou por algum insondável perigo daí decorrente.
E passei a morar na Maison. A dormir naquela cama grande de Madame Snell. Com todas as suas sedas e rendas. A consumir os uísques de Mister Snell. A cuidar das crianças. E a trabalhar, terminando o serviço de Inga e preparando-me para ir para as subestações de Kolwezi e Kikwit.
Marthe contou-me a história do kuiungula. Quando uma pessoa muito amada por alguém é assassinada, não desaparece de vez. No mesmo momento ela é novamente gerada num país distante, às vezes até com outra raça ou outro sexo; mas, à medida que vai crescendo, sente que tem de voltar para o lugar onde foi morta. Aquilo fica incorporado (passa a fazer parte do DNA, ironizei, é um gene cultural) e a pessoa sabe tudo sobre o período que antecedeu sua morte. E contou a história de um marinheiro sueco, de uns dezoito anos, que chegou a Matadi pela primeira vez na vida e sabia onde ficava a Boite Nzimuaka, reconheceu o dono, encontrou o mongali de sua namorada que mandou matá-lo e, naquela pedrona que dá para o Porto, apontou o revólver, mandou o cara ficar de frente para o mar – mesma posição em que havia sido morto – e disse para ele rezar – o mesmo que lhe tinham dito. O mongali morreu de susto, e o Nzimuaka deu pra ele todas as mordomias, durante o tempo que quisesse. Como reparação. Só não deu pra continuar a ajuda porque o sueco se casou com uma zaïroise, comprou uma fazenda de criação de camarão e fixou residência no local. Era a força do kuiungula. Achei interessante, mas só se começasse comigo, porque, até o momento, a não ser a Fundação, tudo ali me parecia novo.
O serviço terminou mais cedo, é véspera do dia do Movimento Popular Revolucionário – MPR. Que pode até ser popular, mas de revolucionário não tem porra nenhuma. É uma ditadura conservadora e reacionária.
Lukula
Aniversário do MPR. A CIS liberou uma van para a tradicional viagem de comemoração a Lukula. Os principais militantes vieram me convidar. Não entendi bem o porquê. Era notório que não simpatizava com a ideologia do governo, não conhecia bem esses caras, que viviam controlando as conversas das pessoas na obra; além disso, nunca compreendi muito bem o papel de Lukula, terra original dos Basundi, nos movimentos de libertação zaïroises. Pouco dela tinha a ver com os Bakongo, apesar de a margem esquerda pertencer ao Zaïre. Na minha cabeça, julgava fosse mais cabindesa. Não era uma grande cidade e não sabia de nenhum líder importante que ali houvesse nascido. A não ser que esse líder estivesse surgindo agora. Mas, evidentemente, meu espírito aventureiro não permitiria fosse recusado convite tão sem pé nem cabeça como aquele. Além do que, o pessoal era legal: Mambo, o bebedor de cerveja, Tarzan, o bem–humorado motorista, Zachary, o misterioso agente de contato da Inteligência de Mobutu com os norte-americanos, Lubini, de Kissangani, partidário de Idi Amin e Fala-Fala, o Bananga, todos meus amigos (da onça?).
Marthe acordou cedo. Preparou um maravilhoso café da manhã. Inhame cozido, scrambled eggs com cebola e salsinha, suco de grapefruit, lituma, pão sírio, linguicinha frita… Abraçou-me carinhosamente. Olhos impregnados de infinita doçura. Ficou um tempão esfregando o rosto no meu, como que pegando baraka. Parecia feliz, estranhamente feliz, como a mãe que vê passar o cortejo com o cadáver de um filho condecorado pelo governo.
Saímos de Inga às cinco da manhã. Maravilhosa viagem. Tomamos uísque, cerveja, fumamos uma manga-rosa da melhor qualidade, fomos cantando o hino de libertação da SWAPO – Namíbia Livre –, e chegamos a Boma aí pela hora do almoço. Fomos ao mercado. Cheio de gente, era um domingo. Verduras, frutas, porcos e gimriques desventrados, peixes e crustáceos de todos os tipos. E comida pronta. Aqueles panelões de moqueca, caruru, sarapatel… Todo mundo comendo. Entramos numa cozinha bem guarnecida. Garrafas com pimenta, amendoim moído… azeite de dendê… pra cozinheiro nenhum botar defeito. Peixes e miúdos de porco espalhados pelas bancadas. Umas panelas grandes que, comentei, dariam para cozinhar um homem; se cortado em pedaços pequenos, evidentemente. A dona do lugar era conhecida do pessoal, e já esperava para o almoço. Um beleza: mwamba des harachides, sarapatel, arroz, mandioca cozida, um lambarizinho frito de entrada. Comecei a ficar preocupado com a volta. Estava programada uma visita à fábrica de triplex – aglomerado de madeira parecido com eucatex – e visita aos marcos da revolução pela authenticité, de 77, comandada pelo ministro Mandrandele, prestigiado pelo povo, mas aceito por Mobutu a contragosto, apenas para manter a base de sustentação do governo. Ponderei que só meio dia para a visita era pouco. Dá tempo, Rodriguês, dá tempo, me sossegaram.
Às cinco fomos para a fábrica, que em nada difere de todas as fábricas montadas pelos europeus pré-colonialistas, colonialistas, pós-colonialistas, neocolonialistas e globalistas: grandes galpões, parecendo garagem de zepelim, uma área para entrada de matéria-prima (no caso as toras de madeira nobre), as máquinas (que há uns trinta anos provavelmente eram modernas), o setor de arte e acabamento (com predominância de mulheres) e a saída de produtos acabados, rumo à Europa: filas de caminhões carregados deslizando em direção ao porto de Matadi. Do lado de fora, no alto das colinas, casas bonitas, sólidas, com estilo e vegetação europeus. Mais embaixo, perto do rio, casas populares, juntinhas, com um ou outro jardim. Na parte intermediária, um setor comercial, com pequenos sobrados tendo no térreo umas lojas com portas de aço sanfonadas – coisa de comerciantes portugueses –, que pareciam já ter vivido dias melhores.
Seis da tarde. Subimos a um promontório e ficamos de frente para o vale onde se encontram as fábricas, as casas dos gerentes belgas, as lojas e, lá no fundo, os barracos dos empregados zaïroises.
Quando partiremos? – pergunto a Zachary.
Não se preocupe, Rodriguês, há tempo para tudo.
Ficamos todos calados, chimbokeando a diamba. Uma leseira no ar.
Disseram que eu era um mindele-mwyombe, pois vivia como branco, comendo do bom e do melhor, ganhava rios de dinheiro, enquanto o negro mesmo, o mwyombe zaïroise, vivia fudido. Concordei com eles. Continuamos cachimbando. Chanvre, malavo, chanvre, malavo… A tarde se esvaía. O sol morrendo lentamente. “Vê ali, Rodriguês, as casas dos belgas? Vê os sobrados dos portugueses? Numa tarde como esta viemos eu, Mambo, Tarzan, Lubini, o ugandês Ucama, que voltou pra terra dele, Fala-Fala, o finado Kassange… fumamos e bebemos como agora. Pegamos o furgão carregado de armas que Mandrandele nos mandou e…”
Pelo adiantado da hora, não dava mais para chegar a tempo de trabalhar na manhã seguinte. Relaxei, “… e o quê?”. A voz de Zachary continuou, como vindo de longe, “… fuzis, cartucheiras, invadimos as casas dos belgas e, depois, as dos portugueses…” O silêncio nos envolvia. Eu alerta. Um alerta relax (você sabe o seu destino, Riobaldo?). “… entramos pelas casas e matamos todo mundo. Mulheres, homens, crianças. Muito sangue, Rodriguês”… Não falava com tristeza. Nem alegria. Parecia um simples comunicado. “Deve estar se perguntando por que te convidamos para a comemoração, não?”. “Não, Zachary, não estou me perguntando. Eu sei. Sempre soube” (falei ou pensei? O torpor me tomava…).
Foi Dorothy Dandridge quem, lamentando uma experiência pessoal, disse: a gente nunca sabe que aquela será a última vez. Se soubéssemos, naquele instante nosso olhar e sentimento seriam talvez diferentes…
Fiquei sentado, olhando a rodela de sol prestes a desaparecer sobre o rio Lukula. Na outra margem, a terra dos Basundi. Dei uma última pitada no fumo-de-angola e sorri. Que outro destino poderia ter eu, um Basundi em terras de Kakongo? Com a lateral dos olhos vi Lubini engatilhar o fuzil e apontar para minha cabeça, enquanto Zachary baixava o boné militar sobre os olhos. Era o sinal para a execução.
GLOSSÁRIO
Baiser – Fazer sexo (francês)
Bas-Zaïre – Região do Zaïre, próxima de Angola, onde o rio Zaïre deságua no Oceano Atlântico e onde se encontra sua capital, Matadi
Branche (Brunch) Mesa de comida que fica servida da manhã até depois do almoço (em inglês, mistura de breakfast com lunch)
Gimrique – Pequeno roedor, espécie de preá
Kimpaba – Antiga arma da África Central, composta por espada e machadinha com lâmina e ponta
Kuiungula – Tipo de reencarnação zaïroise, com o reencarnado possuindo nítida memória da vida passada mais recente
Lituma – Banana amassada em mistura com farinha de mandioca, enrolada em folhas de bananeira e levada ao forno
Mbika – Semente de abóbora
Mbolo – Órgão sexual masculino (swahili)
Mongala – Natural da região em que se encontra a capital do Zaïre, Kinshasa (plural, Bangala; a língua, Lingala)
Mongali – Gigolô
Mundele/Mindele – Estrangeiro
Muzungo – Homem branco
Mwamba – Molho de moqueca, feito de dendê, tomate, pimentão e pimenta
Nkuma – Órgão sexual feminino (swahili)
Soeur – Irmã (francês)
Zaïre, Zaire – País da África Central, antigo Congo Belga e atual República Democrática do Congo. É também o nome do principal rio e da moeda do país.
Zaïroise – Nativo do Zaïre.