LEPÊ CORREIA
Nego Afoito
Podem me chamar de tiziu
Toco preto ou azulão
Toco de lenha queimada
Me chamem de tisna ou tição
De nego da alma preta
Fazedô de confusão
Podem dizer que sou feio
(Macaco não perde não)
Sou escuro que nem breu
Sou parente de carvão
Que a minha alma é suja
Que nem a alma do cão
Que jabuticaba é alva
Se fizer comparação
Que sou tição de fogueira
Depois que passa São João
Que sou borra de cuvitero
Lá dos confins do Sertão
Que das coisas pió do mundo
Eu sou a consumação
Que sou briga em fim de festa
Que pareço boi tungão
Que eu sou tudo o que não presta
Mas que eu tenho alma branca, não.
DELEY DE ACARI
Direita? Esquerda? Sou Crioulo
A Liane Galvão
Direita?
Esquerda?
Sou crioulo.
Ipanema?
Madureira?
Sou favela.
Intelectual?
Operário?
Sou poeta.
Branco?
Negro?
Sou mulato.
Tirano?
Companheiro?
Sou amigo.
Machista?
Feminista?
Sou apenas
Um Homem!
Sou amante!
Vacilo Humano
Para Jurema do Andaraí
Se erro
um negro diz que
é do meu sangue branco
um branco diz que
é do meu sangue negro
Se acerto
um negro diz que
é do meu sangue negro
um branco diz que é do meu sangue branco
Se vacilo entre
o errar e o acertar
o negro e o branco
dizem em uníssono:
– Ele é mulato!
Se erro negro
se acerto branco
se acerto negro
se erro branco
se vacilo mulato
apesar do pensar racista
militâncias ignorantes
e de estratégias políticas neo-fascistas…
Um dia
uma amada de qualquer RAÇA
movida pelo doce impulso
do amor no seu coração
me dirá:
– P’ra mim, amor,
você erra, acerta
e vacila humano.
ÉLE SEMOG
Crítica à tua interpretação
Quero te dizer merda pelas vezes
que a cortina desceu
e só eu te aplaudi.
Merda
pelas tantas vezes
que você foi
o meu único espetáculo.
Te grito MERDA
pelos improvisos
de palco e de cama
por teres representado tão bem o nosso amor
vívido drama.
E sem mágoas
sem rancor
sem as aflições das coxias
eu quero que você
vá a merda,
porque jamais pensei
em fazer da nossa vida um teatro.
Ainda mais eu sendo o produtor
e você servindo de ponta.
Uma seda de mulher
Depois dessa birita toda
tenho que te aconselhar camarada,
mas fique sabendo meu chapa
que eu bebo para não beber
a mágoa de ninguém.
Quanto a ela?
Esquece … esquece mesmo,
pois mulher que faz a gente sofrer
é igual a cigarro em camisa de seda:
dá pra aproveitar,
mas nunca mais é a mesma coisa.
HÉLIO DE ASSIS
Pro Edgard
Vamos tomar uma cachaça
Edgar
Da mais pura lisura
Daquela que cura
Dor de corno, umbigo frouxo, unha encravada
E depois vamos sair por aí
Feito Exu
Das sete encruzilhadas
Vamos fazer uma revolução
Na praça Cruz Vermelha
Baixaremos a porrada
Em todo leão de chácara
Seremos heróis libertários
De todas as prostitutas
Dançando com elas
Acordaremos a cidade
Ao som de rumba, bolero e cha-cha-cha
E depois tomaremos o Municipal
Que em plena noite de gala
Verá atônito nossa chegada
O exercito ilegal
Mendigos , boêmios e bêbados
Faremos de refém a prima-dona
Seviciaremos o coro feminino
Tomaremos da orquestra os instrumentos
Promoveremos o primeiro
Grande e livre
Baile popular
EUSTÁQUIO LAWA
AO HONTEM
Os quilombos de hoje em dia
Não têm bairro ou geografia
E estão por toda parte
Na Prosa e na Poesia
Drama, Comédia ou Costumes
Onde quer se encontre Arte
Onde existir o combate,
amor, carinho ciúmes
Dor, prazer e alegria
Dureza, raiva danada
E até na goiabada
cascão, chouriço, rabada
Pois quem reclama da vida
não está com porra nenhuma
E se quebrei o pé do verso
Chamai a isto heresia
Pois que o Quilombo de hoje
Quebra o verso e até a espinha
de quem só come o pirão
se ali tiver a farinha…
Daí vou roubar linguagem
Símbolo, sino ficado
E fazer uma lavagem
No tino da escadaria
No fino da contraria
Pedir maileme Oxalá
E zinfim pra minha tia
Chegou a hora do vento
Lambê papel desbotado…
CARMEN COM FILTRO
Fui à Fonte do Prazer
pra beber do teu pecado
Foi o mel desse sorriso
e um pouquinho de maldade
que me deixaram sem juízo
e um tantinho embriagado
Sobraram gotas de dor
E um restinho de saudade
SOBRAS
Da luta do dia-a-dia
a nota suja, rasgada
Do samba solto no asfalto
última estrofe, engasgada
Da fuga da armadilha
o olhar de fera acuada
Dos grilhões da escravatura
a marca da chicotada
PERFORMANCES POÉTICAS
1. AFETIVA
Da primeira vez que me assassinaram
Perdi um jeito de sorrir que eu tinha
Depois, de cada vez que me mataram,
Foram levando alguma coisa minha
Tive, de repente, saudade da bebida que estava bebendo
Tive saudade, e tentei lembrar o gosto que faltava,
qual era a bebida.
Fui tropeçando
Entre copos e móveis
Dei com tua boca!
… E se um dia
Souberes que te esqueci,
Reza por mim,
Porque morri…
(Sarapatel produzido por Lawa sobre poemas de Mário Quintana e de Elisa Lucinda, terminando em frase citada por Guaraciaba Eugênia)
2. ATIVISTA 1
“Artistas não vivem em palácios
Artista que mora em palácio,
Ou não é artista
Ou o palácio já não é mais palácio”
Quando eu tiver bastante pão para os meus filhos
para minha amada
pros meus amigos
e pros meus vizinhos
Quando eu tiver livros para ler
Então, eu comprarei uma gravata colorida
Larga, bonita
E darei um laço perfeito
E ficarei mostrando
A minha gravata colorida
A todos os que gostam…
De gente engravatada
preto, branco, pardo
Preto, Branco, Pardo
PRETO, BRANCO, PARDO
PRETO, BRANCO, PRETO, PARDO
BRANCO PRETO, PARDO BRANCO,
PARDO, PARDO, PRETO, BRANCO
PELO URRO, PELO BERRO, PELO BODE
OU NÓS SE UNE,
OU NÓS SE FODE!
(Sarapatel produzido por Lawa, sobre frase de Alcione Araújo, poema de Solano Trindade e um reggae da Ceilândia)
3. ATIVISTA 2
Eu falo do invisível
Falo da dor que regurgita dos olhos da escuridão
Do espasmo contido e perene
Mantido fora do cone das luminárias…
E estou no meio de vós
Como a peste no ombro da desgraça
Como o laço na garganta do cativo
Como a tristeza que amansa vossa mão
Que isto é nossa vida: ESPANTO, GRITO!
CUNHA CINDINDO O PEITO DO DIA,
VAMOS!
PRETO, BRANCO, PRETO, PARDO
BRANCO PRETO, PARDO BRANCO,
PARDO, PARDO, PRETO, BRANCO
PELO URRO, PELO BERRO, PELO BODE
OU NÓS SE UNE,
OU NÓS SE FODE!
(Sarapatel produzido por Lawa, sobre poemas de José Abílio, Oswaldo de Camargo e um reggae da Ceilândia)
JECA TATU
Viemos aqui sem receio
Contar pra todas as gentes
Que entre o povo é voz corrente
Que a vergonha procurada
E nunca nunca encontrada
Não está mais no Continente
Aquele que pede calma
E um pouquinho de esperança
Finge não ver tanta criança
Comendo a semana inteira
A podre xepa da feira
Colhida a ponta de lança
Vejo ao longe um latifúndio
Mais perto o chefe da malta
Que preside a negociata
E nos vende para o mundo
Seu bolso um saco sem fundo
E sem vergonha na lata
Pois cada estrofe que solto
Cada lágrima que salta
Cada verso que me falta
Multiplicarei por mil
Pra transformar em fuzil
E acabar com esta mamata
Hoje que estamos reunidos
Sem repressão, coisa rara
Quem bater palmas pensara
Não me aplauda, nem sorria
Não pode ter alegria
Quem tem vergonha na cara
Convido a todos que vejo
Negro, branco, amulatado
A tirar do anel fechado
Da dor e da mendicância
Das trevas da ignorância
Nosso povo acovardado
Poema construído à maneira do Martin Fierro, clássico poema argentino do início o século XX. São versos heptassílabos, organizados em sextilhas, rimas abbccb: os dois primeiros dão o mote, amenizados pelos dois seguintes; os dois últimos desfechando o golpe final.
Lawa – Sepetiba, 22/09/1984
Você escreveu o Jeca Tatu no dia do meu aniversário e eu nem sabia! Podia ser prá mim?