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REPARAÇÃO – Projeto de Lei de Iniciativa Popular PLIP

ORGANIZAÇÃO PARA A LIBERTAÇÃO DO POVO NEGRO – OLPN

BANDEIRASIMBOLRAEL 2-1

ESTABELECE NORMAS PARA A AOS DESCENDENTES DE POVOS AFRICANOS ESCRAVIZADOS NO BRASIL.

CONSELHO POLÍTICO
NACIONAL PROVISÓRIO
OLPN-MAR 2015


Excelentíssimo Senhor Presidente da Câmara dos Deputados
Sr. Eduardo Cunha

Nós, abaixo-assinados, eleitores brasileiros, nos termos do artigo 14, inciso III e do artigo 61, § 2º, da Constituição da República Federativa do Brasil, subscrevemos o projeto de lei de iniciativa popular, com texto em anexo, que tem por base o fato de ser a escravidão crime contra a humanidade, imprescritível, que, como tal, exige reparação, conforme Declaração da III Conferência Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, da Organização das Nações Unidas — ONU, realizada na cidade de Durban, África do Sul, agosto/setembro de 2001, que estabelece normas para a negociação da reparação (indenização) entre o Estado e os descendentes de povos africanos escravizados no Brasil.

ANEXO

PROJETO DE LEI DE INICIATIVA POPULAR Nº xxx/2015
Dispõe sobre a Reparação aos descendentes de povos africanos escravizados no Brasil, cria o Fundo de Reparação aos Descendentes de Povos Africanos Escravizados no Brasil, o Banco Nacional Cooperativo e de Reservas de Reparação, a Câmara Nacional de Negociação da Reparação e dá outras providências.
Art. 1º Aos descendentes de povos africanos escravizados no Brasil é garantido, como direito de justiça, indenização como reparação histórica pelos crimes de tráfico e de escravidão reconhecidos pela Organização das Nações Unidas — ONU na III Conferência Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, realizada na cidade de Durban, África do Sul, em agosto/setembro de 2001, onde é declarado que o tráfico transatlântico de africanos e sua escravidão e de seus descenden¬tes constituem crimes da História, crimes contra a Humanidade, crimes contra os Direitos Humanos, e, como tal, exigem reparação.
Parágrafo único. Descendente de povos africanos escravizados no Brasil, citado neste artigo, é definido como pessoa autodeclarada negra, preta ou parda, com traços fenotípicos que comprovem sua origem étnica africana.
Art. 2º Os descendentes de povos africanos escravizados no Brasil terão, para aplicação dos Direitos Humanos citados no artigo anterior, as garantias do Estado, nos termos do Inciso ll do artigo 4º da Cons¬tituição da República Federativa do Brasil — CRFB.
Art. 3º O Estado, instituição permanente responsável pelo ordenamento jurídico do sistema escravista que criou o Fundo de Emancipação em favor dos senhores de escravizados, é responsável pelo pagamento da Indenização/Reparação aos descendentes de povos africanos escravizados no Brasil, como dívida histórica.
Parágrafo único. O prazo de vigência da Indenização/Reparação será estabelecido entre as partes, nos termos da Agenda de Negociação da Reparação para Descendentes de Povos Africanos Escravizados no Brasil/ANREDE, como previsto no parágrafo único do artigo 9º desta lei.
Art. 4º O descendente de povos africanos escravizados no Brasil, como sujeito coletivo e seg¬mento étnico nacional, inclusive como citado no artigo 215 da CRFB, terá seu direito à reparação histórica reconhecido pelo Estado, com fundamentos jurídicos no Direito Coletivo e nos termos assegu¬rados pelo inciso LXXVII do artigo 5º da CRFB.
Parágrafo único. Nos termos deste artigo, não haverá negociação individual do Estado com descendente de povos africanos escravizados no Brasil, visto este se apresentar como um coletivo, constituído pelo segmento étnico nacional a ser reparado.
Art. 5º A reparação como indenização aos descendentes de povos africanos escravizados no Brasil, prevista nesta lei, será realizada com bens materiais e pecu¬niários, negociados entre o Estado e representação dos descendentes de povos africanos escravizados no Brasil.
Parágrafo único O valor da indenização, com bens materiais, pecuniários ou ambos, como reparação com base no Direito coletivo, será explicitado por aqueles que têm que ser reparados coletivamente.
Art. 6º A igualdade para o exercício de direitos e acesso a oportunidades implica o reconhecimento pelo Estado brasileiro da dívida histórica existente e reparação dos prejuízos por ele causados a seu povo. Firmado nesse entendimento, e dado que parcela substancial da riqueza do Brasil foi acumulada a partir das receitas auferidas com o tráfico negreiro, a comercialização dos africanos e a exploração do trabalho do escravizado negro, é forçoso o Estado brasileiro reconhecer que as seguintes situações são inaceitáveis, exigindo reparação com o objetivo de serem levadas a cabo drásticas transformações socioeconômicas:
I — as condições de pobreza endêmica dos descendentes de povos africanos escravizados no Brasil nas comunidades negras rurais, nos pequenos, médios e grandes centros urbanos permanecem semelhantes às condições de vida nas senzalas e nos barracos nas matas de seus antepassados na escravidão, e constituem crimes continua¬dos que trazem o passado para o presente;
II — São negros e negras a maioria absoluta da população carcerária, das vítimas do genocídio com foco no extermínio da juventude, dos moradores em habitações precárias, sem saneamento básico, dos sem-teto, sem-terra, população de rua, subempregados, idosos sem amparo, das crianças e adolescentes em situação de risco e das vítimas da violência policial e de todos os tipos de opressão;
III — A baixa qualidade da educação, o péssimo atendimento à saúde, a persistência das doenças endêmicas, a precariedade dos transportes, os entraves ao acesso a bens culturais, ao lazer, a má alimentação popular, o desrespeito aos povos e comunidades tradicionais de matriz africana e a suas manifestações religiosas, têm como alvos principais os moradores de territórios vulneráveis, constituídos de negros e indígenas;
IV — Dado que a riqueza nacional tem origem na exploração da mão-de-obra, no genocídio racista do povo negro e dos povos indígenas, e na expropriação de seus territórios e recursos naturais, fato que vem se repetindo com as comunidades quilombolas, é imperativo que haja garantia imediata, irrestrita, de seus direitos territoriais, culturais e civis, das áreas tradicionalmente ocupadas por essas comunidades, bem como apoio a seu desenvolvimento, com a utilização dos recursos econômicos, políticos e humanos que se fizerem necessários.
Art. 7º O Estado disponibilizará, como elementos passíveis de serem negociados entre o Estado e os descendentes de povos africanos escravizados no Brasil, os seguintes recursos:
I — Bens imóveis pertencentes à União, estados e municípios, fora de uso por mais de cinco anos ou em estado de abandono;
II — Bens móveis, resultados de apreensões dos órgãos de fiscalização e de segurança pública da União, estados e municípios, sendo que os colocados à disposição da justiça serão automaticamente liberados se despertarem interesse de um dos negociadores;
III — Produtos procedentes de contrabando e de outras origens apreendidos pela Receita Federal;
IV — Loterias;
V – Provenientes da extração dos recursos naturais de toda ordem;
VI – Heranças jacentes e vacantes, bens confiscados e outros de mesma natureza em poder do Estado;
VII — Bens, direitos e valores depositados em favor da União nas instituições federais, relativos a sentenças condenatórias transitadas em julgado, não reclamados dentro dos prazos estabelecidos em lei.
Parágrafo único. A União permutará bens móveis e imóveis pertencentes a estados e municípios quando os mesmos forem exigidos como reparação pelos descendentes de povos africanos escravizados no Brasil.
Art. 8º O Estado criará o Fundo de Reparação como reconhecimento do direito de equidade dos descendentes de povos africanos escravizados no Brasil, em contraponto ao Fundo de Emancipação de Escravos, criado para indenizar senhores escra¬vocratas.
Art. 9º O Fundo de Reparação será assim composto:
I – Valor porcentual de três por cento (3%) do PIB de cada ano e do lucro anual bruto da extração de recursos naturais de toda ordem;
II – Recursos financeiros de restituições de Imposto de Renda, de prêmios de loterias e outros não reclamados e retidos em repartições da União ou em estabelecimentos financeiros e bancários estatais.
Parágrafo único. Os recursos financeiros previstos nos incisos I e II deste artigo terão seu recolhimento para o Fundo de Reparação finalizado, em princípio, no ano de 2048, quando se completam cem anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, marco dos diversos tratados e convenções das Nações Unidas que decidiram serem os crimes contra a humanidade imprescritíveis e que exigem reparação, a menos que outro prazo seja acordado pelas partes em negociação.
Art. 10 Fica instituído o Conselho de Acompanhamento e Gestão do Fundo de Reparação aos descendentes de povos africanos escravizados no Brasil, órgão de caráter deliberativo, cujos membros serão designados pelo Presidente da República, com a atribuição de estabelecer as políticas, diretrizes e prioridades do Fundo e acompanhar a aplicação dos seus recursos.
Parágrafo único. Ato do Poder Executivo regulamentará a composição e o funcionamento do Conselho de que trata este artigo, assegurada a representação majoritária dos descendentes de povos africanos escravizados no Brasil.
Art. 11 Compete ao Conselho de Acompanhamento e Gestão do Fundo:
I – coordenar a formulação das políticas e diretrizes gerais que orientarão as aplicações do Fundo;
II – selecionar programas e ações a serem financiados com recursos do Fundo;
III – coordenar, em articulação com outros órgãos e entidades responsáveis pela execução dos programas e das ações financiados pelo Fundo, a elaboração das propostas orçamentárias a serem encaminhadas ao órgão central do Sistema de Planejamento Federal e de Orçamento, para inclusão no projeto de lei orçamentária anual, bem como em suas alterações;
IV – acompanhar os resultados da execução dos programas e das ações financiados com recursos do Fundo;
V – dar publicidade, com periodicidade estabelecida, dos critérios de alocação e de uso dos recursos do Fundo.
Art. 12 O Estado vai disponibilizar para negociação ações ordinárias das empresas e estabelecimentos bancários estatais, títulos do Tesouro Nacional e outros papéis de valor comprovado.
Parágrafo único. As ações e títulos negociados serão gravados com o nome do Beneficiário e só poderão ser repassados a terceiros vinte (20) anos depois da sua aquisição.
Art. 13 O Estado vai autorizar que a União recrie o Banco Cooperativo com o título de Banco Nacional Cooperativo de Reservas pa¬ra Reparação/BNCRR, com a finalidade de administrar o Fundo de Reparação e outros recursos financeiros disponibilizados para a reparação.
§ 1º — Deverá ser garantida a participação paritária, no Conselho de Administração do Banco, de representantes do governo e dos descendentes dos povos africanos escravizados no Brasil.
§ 2º — Será negociado, entre o Estado e descendentes de povos africanos escravizados no Brasil, porcentual do Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza previsto nos artigos 79, 80 e 81 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias — ADCT, da CRFB, regido por normas subsequentes, para que este recurso componha o pa¬trimônio do BNCRR.
§ 3º — Os descendentes de povos africanos escravizados no Brasil, como segmento étnico nacional, além dos benefícios estabelecidos nos artigos 5º e 6º desta lei, serão indenizados coletivamente quando organizados em cooperativas de profissão e outras que os reúnem com interesses comuns, por ter a reparação suas bases no direito coletivo.
Art. 14 Os impasses que venham a surgir nas negociações entre o Estado e descendentes de povos africanos escravizados no Brasil serão julgados por juiz arbitral, escolhido de comum acordo entre as partes em litígio, cuja decisão produzirá seus efeitos nos termos jurídicos vigentes.
Parágrafo único. O juiz arbitral deverá ser personalidade brasileira ou estrangei¬ra de competência reconhecida, reputação ilibada, e que não exerça cargo ou função em governo ou Estado.
Art. 15 O Estado cria um órgão com o título de Câmara Nacional de Negociação da Reparação — CNNR, instituição onde serão realizadas as negociações para indenização/reparação entre o Estado e os descendentes de povos africanos escravizados no Brasil nos anos que se seguem.
Parágrafo único. O tempo de duração das negociações da Reparação entre as partes citadas neste artigo será determinado pela agenda de negociação entre o Estado e os descendentes de povos africanos escravizados no Brasil.
Art. 16 Será destinada para manutenção e despesas da CNNR dotação orçamentária anual na ordem de 0,5% do total das despesas previstas no Orçamento Anual da União.
Parágrafo único. Estarão na conta da dotação orçamentária prevista neste artigo as despesas dos representantes dos descendentes de povos africanos escravizados no Brasil com transporte, hospedagem e refeições para que os mesmos se façam presentes nas reuniões de negociação.
Art. 17 O Estado considera ter prestado “serviço relevante à Nação” toda pessoa que, de qualquer das partes, participar direta e assiduamente das rodadas de negociação da Reparação.
Parágrafo único. Empresa privada, que possuir em seus quadros funcionário com participação direta nas negociações da reparação, estará autorizada a deduzir de sua Declaração Anual de Imposto de Renda valor porcentual, a ser definido pelo órgão competente, correspondente à força de trabalho cedida.
Art. 18 Os acordos entre as partes terão aplicação imediata, e o que necessitar de deliberação do legislativo federal será submetido a aprovação por meio de acordo de lideranças.
Art. 19 O encerramento das negociações da reparação será acor¬dado entre as partes, sendo então dispensadas as representações, encaminhados os funcionários às suas repartições de origem e desativa¬da a Câmara Nacional de Negociação da Reparação.

JUSTIFICAÇÃO
A exigência de indenização feita pelos descendentes de povos africanos escravizados no Brasil em razão dos crimes de tráfico e de escravidão aos quais seus antepassados estiveram há séculos submetidos, contida neste Projeto de Lei de Iniciativa Popular, está assentada nos diversos tratados e convenções da Organização das Nações Unidas — ONU que estabeleceram serem os crimes contra a humanidade imprescritíveis e que exigem reparação. Recentemente, na Declaração da III Conferência Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, realizada na cidade de Durban, África do Sul, em agosto/setembro de 2001, é reconhecido explicitamente que o tráfico transatlântico de africanos e sua escravidão e de seus descenden¬tes constituem crimes da História, crimes contra a Humanidade, crimes contra os Direitos Humanos, e, como tal, exigem reparação, aqui considerada como o mesmo que indenização.
No que tange à reparação – considerada como reparação histórica por ser indenização de crimes da história e, por conseguinte, dívida histórica –, existem aspectos importantes que não podem deixar de ser abordados nesta justificação.
Inicialmente, há de se reconhecer que o Estado, como instituição permanente, é de quem os descendentes de povos africanos escravizados no Brasil exigem indenização. A reparação a ser exigida do Estado não é apenas por ser este uma instituição permanente, mas — e sobretudo — porque ele, inclusive, legislou para dar ordenamento jurídico ao sistema escravista.
Sobre a matéria, importa observar que podem ser considerados dois direitos a favor dos descendentes de povos africanos escravizados no Brasil: o direito de justiça – os antepassados terem sidos vitimados pelo crime de tráfico, comercialização e escravização – e o direito de equidade — por não terem sido os ex-escravizados beneficiados como foram seus “senhores” pelo Fundo de Emancipação que o Estado da monarquia brasileira formulou, administrou e fez com que vigorasse até o ano de 1930, mais de 40 anos após a Proclamação da República.
O Fundo de Emancipação, formulado pelo Estado, foi estabelecido em leis do Império, como mostram o artigo 3º da Lei nº 2040, de 28 de setembro de 1871 (Ventre Livre) e o artigo 2º da Lei nº 3270, de 28 de setembro de 1885 (Sexagenários), in verbis:
Lei nº 2040, de 28/09/1871
[…] Art. 3º Serão annualmente libertados em cada Provincia do Imperio tantos escravos quantos corresponderem á quota annualmente disponivel do fundo destinado para a emancipação.
§ 1º O fundo de emancipação compõe-se:
1º Da taxa de escravos.
2º Dos impostos geraes sobre transmissão de propriedade dos escravos.
3º Do producto de seis loterias annuaes, isentas de impostos, e da decima parte das que forem concedidas d’ora em diante para correrem na capital do Imperio.
4º Das multas impostas em virtude desta lei.
5º Das quotas que sejam marcadas no Orçamento geral e nos provinciaes e municipaes.
6º De subscripções, doações e legados com esse destino.
§ 2º As quotas marcadas nos Orçamentos provinciaes e municipaes, assim como as subscripções, doações e legados com destino local, serão applicadas á emancipação nas Provincias, Comarcas, Municipios e Freguezias designadas […] Lei nº 3270, de 28/09/1885
[…] Art. 2º O fundo de emancipação será formado:
I. Das taxas e rendas para elle destinadas na legislação vigente.
II. Da taxa de 5% addicionaes a todos os impostos geraes, excepto os de exportação.
Esta taxa será cobrada desde já livre de despezas de arrecadação, e annualmente inscripta no orçamento da receita apresentado á Assembléa Geral Legislativa pelo Ministro e Secretario de Estado dos Negocios da Fazenda.
III. De titulos da divida publica emittidos a 5%, com amortização annual de 1/2 %, sendo os juros e amortização pagos pela referida taxa de 5%.
§ 1º A taxa addicional será arrecadada ainda depois da libertação de todos os escravos e até se extinguir a divida proveniente da emissão dos titulos autorizados por esta Lei.
§ 2º O fundo de emancipação, de que trata o n. I deste artigo, continuará a ser applicado de conformidade ao disposto no art. 27 do Regulamento approvado pelo Decreto n. 5135 de 13 de Novembro de 1872.
§ 3º O producto da taxa addicional será dividido em tres partes iguaes:
A 1ª parte será applicada á emancipação dos escravos de maior idade, conforme o que fôr estabelecido em regulamento do Governo.
A 2ª parte será applicada á libertação por metade ou menos de metade de seu valor, dos escravos de lavoura e mineração cujos senhores quizerem converter em livres os estabelecimentos mantidos por escravos.
A 3ª parte será destinada a subvencionar a colonização por meio do pagamento de transporte de colonos que forem effectivamente collocados em estabelecimentos agricolas de qualquer natureza.
§ 4º Para desenvolver os recursos empregados na transformação dos estabelecimentos agricolas servidos por escravos em estabelecimentos livres e para auxiliar o desenvolvimento da colonização agricola, poderá o Governo emittir os titulos de que trata o n. 3 deste artigo.
Os juros e amortização desses titulos não poderão absorver mais dos dous terços do producto da taxa addicional consignada no n. 2 do mesmo artigo […] A partir de tais legislações, verifica-se que o Fundo de Emancipação não só propiciava indenização aos senhores que libertassem os seus escravizados, mas também a subvenção dos transportes marítimo e terrestre dos imigrantes europeus, tendo como motivo alegado substituição da força de trabalho.
Este Fundo vigorou inalterado — em momento algum foi interrompido — de 1871 a 1930, ainda que mudanças estruturais houvessem ocorrido: a mudança do regime político, de Monarquia para República e mudanças de sistema econômico, onde as relações trabalhistas passaram de relações de trabalho escravo para relações de trabalho assalariado.
A verdade que envolve o Fundo de Emancipação do Brasil — cópia do fundo de emancipação da Coroa inglesa para indenizar fazendeiros das suas possessões no Caribe — continua, até os dias atuais, bastante nebulosa. O dinheiro que os senhores de escravos sacavam do Fundo de Emancipação como pagamento dos seus escravizados, por eles libertados, na verdade correspondia à “venda” de escravizados para o Estado, eventualmente por valores abaixo de seu preço de mercado.
Importa observar que uma das formas de libertação estabelecia que o preço do escravo de lavoura e mineração seria a metade ou menos da metade de seu valor de mercado. Assim, se o valor de mercado de escravo de lavoura e mineração era de 800.000 réis, a “venda” para o Estado ficava em 400.000 réis ou menos, ainda assim muito dinheiro na época.
Algumas luzes surgiram para esclarecer a “negociata” realizada com dinheiro do erário, silenciada pelos abolicionistas durante a monarquia e, mais tarde, pela elite republicana. Um fato esclarecedor é o motivo da existência de poucos escravos a serem libertados, efetivamente, por ocasião da Abolição da Escravatura, em maio de 1888: a maioria havia sido “vendida” pelos seus senhores ao Fundo de Emancipação. Além disso, havia muitos escravos da Coroa (escravos estatais) e grande número de fazendas com escravos libertos, mas sem a presença dos proprietários, antigos “senhores”, que, para justificar esta atitude, alegavam desinteresse pela atividade agrícola.
Os atuais territórios quilombolas — chamados de comunidades negras rurais quilombolas —incluem-se no caso acima citado.
Assim, o fato de ter existido o Fundo de Emancipação do Brasil é um dos fundamentos que os descendentes de povos africanos escravizados colocam para exigir equidade como um direito que possuem.
A subvenção dos transportes marítimo e terrestre dos imigrantes europeus, beneficiados pelo Fundo de Emancipação, só foi revogada pela Revolução de 30, com a derrocada da República Velha e a assinatura, por um dos líderes, Getúlio Vargas, do decreto que proibia a imigração subvencionada.
Quanto aos documentos das negociações do Estado com os senhores de escravizados, que sacavam dinheiro do Fundo de Emancipação por ordem do então Ministro da Fazenda, Rui Barbosa, desapareceram tão logo a República foi implantada no Brasil. Esta grande personalidade da História, movida por desmedido zelo para com o erário republicano, mandou incendiar o Arquivo Nacional, onde se encontravam os documentos ligados ao Fundo de Emancipação, com a justificativa de fazer desaparecer a memória da escravidão.
A razão real, porém, era impedir que os ex-escravos exigissem do Estado equidade, com direito de serem indenizados como o foram os senhores de escravizados.
O direito à reparação que os descendentes de povos africanos escravizados no Brasil exige que seja reconhecido — até hoje negado — é a razão deste Projeto de Lei de Iniciativa Popular. Reparação, do ponto de vista conceitual, requer negociação, uma vez que esta palavra vem, há séculos, sendo usada nas negociações ao término dos conflitos bélicos para designar reparação de guerra.
No caso em pauta, o Estado do Brasil é aquele que repara — o reparador —, e os descendentes de povos africanos escravizados no Brasil são aqueles que determinam a forma de indenização — o reparado.
Assim, este Projeto de Lei tem como objetivo estabelecer as normas da negociação entre o Estado e a representação dos descendentes de povos africanos escravizados no Brasil. Por conseguinte, é fundamental que o Estado não só assuma a responsabilidade de que tem de negociar, mas, também, que reconheça a necessidade de criar, objetivamente, condições para que a negociação se concretize (vide, principalmente, artigos 14, 15, 16 e 17 deste Projeto de Lei).
Nesse sentido, três questões devem ser explicitadas.
Em primeiro lugar, é necessário que o Estado manifeste, a partir do sancionamento do presente Projeto de Lei, sua inequívoca predisposição de se sentar à Mesa para negociar.
Em segundo lugar, o Estado deverá colocar bens materiais e pecuniários de sua propriedade, como patrimônio do Estado, à disposição dos descendentes de povos africanos escravizados no Brasil para que, na Mesa de negociação, façam parte da Agenda de Negociação da Reparação — documento dos descendentes de povos africanos escravizados no Brasil —, para que estes escolham quais destes recursos materiais e/ou valores de indenização pecuniária atendem ao direito à reparação dos diversos segmentos de seu coletivo.
Em terceiro lugar, o Estado deverá proporcionar condições efetivas para que os negociadores, tanto da parte do Estado quanto dos descendentes dos escravizados, possam estar presentes em todas as rodadas de negociação ou onde quer que suas presenças se façam necessárias.
É imperioso abordar, ainda, nesta justificação do Projeto de Lei de Iniciativa Popular, a questão do crime continuado, que, a rigor, é a base em que se assenta o Direito à reparação dos descendentes de povos africanos escravizados no Brasil.
O crime de escravidão, mais do que o crime de tráfico transatlântico, não deixa dúvida de se submeter ao princípio do crime continuado. As senzalas e as construções rudimentares nas matas, onde escravos e fugitivos da escravidão passavam grande parte de suas vidas, não eram diferentes das atuais palafitas do Norte/Nordeste e dos barracos de madeira e papelão das fa-velas do Sudeste, onde hoje vive a maioria dos descendentes de povos africanos escravizados no Brasil. Enfatizamos aqui a precariedade habitacional, a ausência de saneamento básico e a proliferação de doenças endêmicas principalmente nessas regiões; entretanto, é inegável — e os indicadores sociais mostram — que em todas as regiões do Brasil tais condições se reproduzem nas áreas onde há maioria negra.
As condições de vida dos descendentes de povos africanos escravizados no Brasil ainda são as mesmas dos seus antepassados no cativeiro. Esta é uma das provas de que não houve interrupção alguma nesse processo, e que os efeitos da escravidão, um crime contra a humanidade, vêm perdurando através das décadas, evidenciando, desta maneira, o crime continuado que vem sendo cometido pelo Estado brasileiro.
Assim, os moradores dos territórios quilombolas, entre todos os descendentes de povos africanos escravizados no Brasil, são os que atestam de forma mais explícita serem estes crimes contínuos, que devem ser reparados e lhes feito justiça como crimes continuados. Portanto, é de direito que as exigências por in¬denização, como reparação para os moradores das comunidades negras rurais quilombolas, sejam reco¬nhecidas como legítimas e atendidas prontamente pelo Estado bra¬sileiro.
Importa observar que as propostas apresentadas neste Projeto de Lei não se inserem no sistema de exclusões objetivas — estipulado nas hipóteses previstas no parágrafo primeiro do artigo 61 da Constituição Federal —, que determina as matérias excluídas da iniciativa geral descrita no caput do artigo 61 da Carta Magna. Tal entendimento pode ser exemplificado pela aprovação, pelo Congresso Nacional, da Lei nº 11.124, de 16/06/2005, que dispõe sobre o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social – SNHI, cria o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social – FNHIS e institui o Conselho Gestor do FNHIS, oriunda do Projeto de Lei de Iniciativa Popular relativo ao Fundo Nacional de Moradia Popular — FNMP.
Em conclusão, os direitos de justiça e coletivos destacados, assim como os demais direitos negados há séculos aos descendentes de povos africanos escravizados no Brasil, não podem deixar de ser sempre lembrados durante todo o processo de negociação da reparação.

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