Perfume o ar
Doirando o chão
Se faz garoa
Chovem rosas de ilusão
(Royce do Cavaco)
Que é o amor? Muitas vezes nos perguntamos, seja para avaliar nossos próprios atos e omissões, seja para saber se em algum momento da vida fomos verdadeiramente amados. Se teremos sido queridos apenas pelo prazer sexual que proporcionamos, pela segurança material que representamos ou por fortuita situação de poder que detenhamos. Talvez, ainda, para concluir se quisemos alguém apenas para lutar contra o medo da solidão ou responder à cobrança social de uma companhia.
Eis a interrogação, e a resposta passo aos leitores. Não por preguiça de analisar detidamente os fatos, rodeada pelo medo de adentrar emoções, mas por absoluta incapacidade de afastar o foco da vida vivida e assestar as lentes do microscópio (ou seria do telescópio) pessoal sobre as gentes, lugares, eventos e relações vividas. Confesso minha incompetência em elaborar análise transparente e desapaixonada dos acontecimentos para apresentar a todos vocês que se debruçam sobre meu pensar.
Dizia Ortega y Gasset: “eu sou eu e minha circunstância”. (Já meu amigo Paulo Roberto contestava: “tem o Ortega e o Gasset. É preciso ver qual deles disse isso. Eram tão amigos que as pessoas confundem suas falas, hehehe…”). Resta saber em que medida as circunstâncias assumiram o poder, tornando-me mero coadjuvante de um enredo em que não participei nem da produção nem da direção.
Aquelas festas em Botafogo duraram pouco. Dois ou três anos, no máximo. Felizmente. Caso contrário, eu certamente já estaria morto.
Eram na casa de Lisandra, onde se misturavam fumo, pó e outros babados, com droguinhas mais sociais: cerveja, vinho, cachaça, vodca… Mas Lisandra mesma não consumia. Gostava era da fuzarca. E não gastava muito. Naquele tempo, final dos 70, início dos 80, tinha um namorado, velhinho simpático, pesquisador consagrado da Fundação Osvaldo Cruz, que bancava o principal. Lugar meio anárquico. Onde comiam e bebiam, depois as pessoas se cotizavam para as despesas, na medida de suas possibilidades. Quem tinha mais dava mais. Os próprios convidados faziam comida, lavavam vasilhas e arrumavam a casa. Todos trabalhavam. Uns mais, outros menos. Alguns praticamente só comiam, bebiam e trepavam. Outros, pouco comiam, bebiam ou trepavam, mas ajudavam em todo o resto. Queriam apenas participar. Uma certa regra havia: drogas – bebidas não se enquadravam como – eram bancadas pelo usuário. E cachaça nem sequer se rateava. Era brinde da casa e de todos, que sempre traziam uma “da boa”, “de rolha”, “do alambique” – um qualificativo desses qualquer – de Minas, São Paulo ou do interior do estado do Rio.
Foi ali que conheci Rute.
Corpo magro, quase alta, rosto pouco expressivo, membros longos, ossudos. Pele bem negra, com umas poucas espinhas. Ar triste, pensativo. Ficava sentada no chão, perto do som, concentrada, trocando eficientemente as fitas. Só tomava cerveja. Que não fazia sobre ela quase efeito algum. Falava o mínimo necessário. Quando cheguei à casa, pela primeira vez, era já frequentadora habitual. Mas a turma pouco sabia sobre ela. Eu, ao contrário, chegara do meio para o fim, mas conhecia a maioria das pessoas. Da literatura, das performances poéticas, do Movimento Negro…
Nesse primeiro dia, depois da esbórnia, dei uma cochilada e fui dos primeiros a acordar. Fomos escalados para a padaria e descemos juntos. Bem espigadinha, no princípio achei que fosse mais nova do que realmente era. Parecia não ter mais que dezesseis, dezessete anos, mas depois soube que passava dos vinte. Usava camisa social branca, leve, bem aberta, deixando livres os peitinhos de adolescente. Aquilo assim de manhã me deixou transtornado. Tentei pegar-lhe a mão. Olhar mais por dentro do decote. Ela se mostrava neutra. Nem cooperava nem me rechaçava. Embalamos os pãezinhos. Era organizada: manteiga e leite num saquinho; noutro, o pó de café… Tratou logo de ocupar cada mão minha com um pacote.
Perguntei onde morava. Se e onde trabalhava. Não se dava ao trabalho de responder. Parei de perguntar. Voltamos, com nossos ombros se tocando. Aquilo me excitava. Para ela, parecia indiferente.
À medida que as pessoas iam acordando, a festa ia pegando novo embalo. Tinha uma mulher do andar de baixo, Regina, que era a fornecedora da erva. Tanto vendia quanto consumia. Já se disse que “o Brasil é um país onde as putas gozam, os cafetões se apaixonam, os traficantes são viciados e o dólar no paralelo é mais barato que o oficial”. Regina não fugia à regra. Tinha um casal de filhos que sempre aparecia no início da festa. Depois sumiam. De manhã iam pra escola, voltavam, faziam os exercícios de casa e almoçavam, normalmente. Não misturava filhos com negócios. Ainda bem.
Minha transação com Rute demorou a engrenar. Primeiro, que não falava muito. Eu ficava sem saber até que ponto estava bem na fita. Segundo, que ela não era o que se poderia mesmo chamar de ativista, no sentido real do termo. Depois que a conheci, procurava-a sempre nas nossas constantes manifestações contra o racismo. Difícil encontrá-la. Aparecia bissextamente, ouvia o papo político e, na hora de se formarem os grupos de trabalho, ia saindo de fininho. Depois era encontrada nalgum barzinho próximo tomando cerveja. Quando muito ajudava a preparar uns cartazes, misturar cola, e sumia de novo. No dia da manifestação só se a via no final, conversando aqui e ali com um ou outro, nada mais. Decididamente, como militante não era lá essas coisas.
Teve uma festa boa. Veio uma turma de São Paulo, poetas, artistas plásticos, um amigo de Lisandra que tava montando uma livraria com a temática racial, e agregados. De madrugada, quando a gente saía pra continuar o embalo na casa de um parceiro nosso, membro da Esquadrilha da Fumaça, descobrimos que uma paulista, a mais gostosinha delas, tinha desaparecido. Li ficou preocupada, queria chamar a polícia. Argumentou-se que o ambiente não era bom para os homens da lei. A gente podia acabar em cana. Além do mais, a paulistinha passara a noite inteira atracada com um vagabundinho carioca (que, aliás, ninguém sabia de onde tinha surgido). Os dois dançando, sempre buscando o canto mais escuro da sala. De vez em quando levavam uma trombada para se mancarem. Mas não desengatavam. Pelo jeito, ele já estava dentro dela e, se separasse, ia ser um vexame. Afinal, a gente era liberal, mas ali não era a casa da Mãe Joana (afinal, quem terá sido essa Mãe Joana, hein? Talvez uma injustiçada, coitada).
Vasculhamos tudo. O Mourisco, embaixo do Manequinho, gritamos, andamos pra cima e pra baixo, perguntamos na portaria do Edifício Rajá (lembram-se?). Nada. Hotel, motel, nem pensar. O cara era um duro. Ela também.
Foram aparecer só no café da manhã. Quer dizer, da tarde. Sujíssimos, da cabeça aos pés. Mas bem felizes. Tinham deitado e rolado pelas calçadas de Botafogo. Cambada! Todo mundo ficou puto com o sumiço, mas lá dentro uma pontinha de inveja.
Lembro bem desse caso porque foi quando fiquei com Rute. Nessa época eu morava num apartamentinho alugado em Copacabana, na Mascarenhas de Moraes. Após se arrumar e despedir do pessoal, desceu junto comigo e perguntou se podia ir pra minha casa. Disse que sim. Entrou no carro de cabeça baixa. Parecia uma ovelhinha indo pro sacrifício. Fiquei na minha. Chegamos. O tempo todo calada. Enquanto eu tomava um banho, sentou-se ao pé do som, escolheu as fitas (fitas, lembram?) e ficou ouvindo, esperando. Expectativa ou temor?
Das relações amorosas que tive, essa com Rute está entre as mais intrigantes. Nunca pude afirmar que fosse mercenária. Só em momentos críticos de sua vida solicitou minha colaboração. E nem sempre em dinheiro. Muito justo. “De cada um de acordo com sua possibilidade, a cada um de acordo com sua necessidade.” Eu não era metido a anarquista? E nunca nos assumimos como namorados. Talvez ela tivesse vergonha da nossa diferença de idade. Afinal, parecia uma menininha e eu já estava perto dos quarenta. Também, nunca dei muita força para que o caso se tornasse sério. Achava aquilo meio inconsequente. E, no entanto, vejo hoje que essa relação nos marcou profundamente. Bom, pelo menos a mim.
Prova é que guardo todos os detalhes dessa primeira vez. Saí do banho nu, peguei-a pelas mãos e trouxe até a cama. Envergava um vestidinho de estampado vermelho. Pouco pano por baixo. “Vem cá, meu tesãozinho…” Enfim minha boca podia avançar livremente para aqueles seios maravilhosos. Beijei-lhe o pescoço, a orelha, lábios, olhos. Sua respiração começou a se tornar difícil. Afastou-se. Tirou o vestido pela cabeça. Ficou só de calcinhas, brancas, de renda, bem cavada. Tinha um gosto refinado para calcinhas. Nunca a vi usar uma que não fosse excitante, nova, no ponto para ser freneticamente retirada. Deitei-a de costas. Aconcheguei-me. Virei-a de lado. Segui lambendo suas costas. Apertou-me as mãos, com força. As unhas longas se cravavam em todo lugar que pegavam. Comecei a retirar-lhe as calcinhas. A bundinha empinada, estreita. O monte crespo, de gruta úmida, vermelha, trêmula, aproximou-se da minha boca. Quando a penetrei, vagarosamente, já estava completamente fora de si, entregue. A respiração ofegante confundia-se com os gemidos: aahan, aahan. À medida que lhe penetrava as entranhas, que se liquefaziam em gotas viscosas a se espalharem pelo lençol, sua voz ia ficando cada vez mais embargada. O medo se fora. Tentei colocá-la por cima, mantendo o encaixe. Estava exangue. Sem forças para se movimentar, coitadinha. Ficou escanchada sobre meus joelhos e eu mesmo tive que me encarregar dos movimentos. Fui retirando da grutinha meu bastão encharcado. Que felicidade. Seu prazer pleno era meu máximo prazer. Encaixei-me por trás de suas costas. Acariciei-lhe o ânus. Passei a língua úmida e comecei a encaixar a cabeça naquele anel enrugadinho. Ela implorou, sussurrante: “aí não, Tato, dói muito…”
Em toda minha vida, foi a única mulher a me chamar de Tato. Eu sentia tanto carinho nesse apelo que, muito tempo depois, anos sem vê-la, só o pensar nessa palavra já me trazia imediatamente sua imagem, vívida, sua voz, implorante, seu cheiro, seu gosto, a tessitura da pele.
Passamos a nos encontrar com frequência.
Um dia, de repente, sem aviso, mudou-se para São Paulo. O contato, então, ficou difícil. Ficamos praticamente incomunicáveis. Sabia que, no Rio, morava no subúrbio, em Mesquita. Só isso. Não tinha seu telefone, nunca tivera. Nossos encontros dependiam dos seus desejos. Que sempre coincidiam com os meus, permanentes. Agora…
Alguém me disse que estava morando numa casa velha na Barra Funda, abandonada pelo pai quando fugira para o Rio, nos idos de 70, perseguido pelo governo militar. E que andava estudando, trabalhando, bebendo pela noite. Enfim, que estava bem.
Não foi exatamente o que constatei uns sete meses depois, quando fui a Sampa visitar meus amigos Arnaldo, Abílio, Márcio, Esmeralda, Benícia, Isabel e o Triunvirato – Oswaldo, Abelardo e Colina. Poetas e militantes da negritude, que haviam encostado as canetas, – quer dizer, as teclas, e estavam no embalo do desfile de Carnaval. Carnaval em São Paulo? Huumm. Mas fui. Saí do Rio no sábado e, no dia seguinte, já estava na Avenida.
“Pra frente, minha Freguesia do Ó! Esse é o canto que vem do coração do povo…”
Maravilhoso. Não lembro mais quem foi a campeã. Mas o que me impressionou foi o desfile da vice-campeã, Rosas de Ouro, com lindo samba-enredo sobre a Avenida São João e os eventos que fizeram sua história, desde o início do século XX.
“Olhe no meu olhar pra sentir
O canto que vem de dentro de mim
Ô, ô ô ô ô
A Rosas de Ouro chegou
Se essa rua fosse minha eu implantava
Dentro do meu coração
Avenida São João
Oh, meu amor, quero lhe oferecer
Uma estrela e uma flor
Uma boa ideia, meu senhor
Aquele tempo… ô ô ô
Primeiro bonde a cavalo a conduzir
Os namorados em noite quente de amor
Olê, olê, olê olá
Na ladeira do João
O correio foi morar
Olê, olê, olê olá
Na ladeira do João
O correio foi morar”
Além de a harmonia, fantasias, mestres-salas e porta-estandartes nada deverem aos do Rio, fui tocado imediatamente pela cadência da evolução: não sei se vocês se lembram; antes de surgir o Zuzuca do Salgueiro com o samba “Pega no Ganzê, Pega no Ganzá”, que parece mais marcha (acho que o enredo era Festa para um Rei Negro, o ano, 72, desculpem-me, a memória não me é fiel, mas também, se fosse me lembrar de todas as datas, de todos os sambas-enredos, escolas e autores, eu poderia era substituir os computadores do Museu da Imagem e do Som), o samba das escolas era mais sincopado, com um ritmo mais marcado, samba mesmo – também, que é um samba mesmo? Daí que o desfile da Rosas era com aqueles passos miúdos das escolas de antigamente, da Praça Onze, que permitiam aos passistas mostrar todo seu virtuosismo. À medida que a escola evoluía fui me empolgando, me levantando, um arrepio de calor e prazer subindo pelo corpo; comecei a aplaudir freneticamente; meus amigos e o resto da plateia, envolvidos pela magia daqueles instantes, não notaram as lágrimas me escorrendo pelo rosto, pescoço, alma… O retorno de uma arte que nunca se foi:
“No caipira o encontro do circo é pontual
Conservatório dramático musical
Embala mãe preta em seu altar
O Ponto Chic, Americanos e Blacks
A noite vai brilhar
Com damas e valetes ao luar
Ranchos, escolas de samba e cordões
Um abraço aos antigos foliões”
Começa a chover. O conjunto lúdico entra em harmonia com a natureza. Os semblantes sorridentes por trás das fantasias azul-dourado-verde cantam voltados para o público, de pé a aplaudir a obra-prima de Royce do Cavaco:
“Perfume o ar
Doirando o chão
Se faz garoa
Chovem rosas de ilusão ( iihh)
Perfume o ar
Doirando o chão
Se faz garoa
Chovem rosas de ilusão”
A Escola se foi.
Restei no mesmo lugar, em pé, siderado com a música, a evolução, as cores, os cheiros das pessoas, a água me escorrendo sobre a pele como aura liquefeita. Grande desfile…
Saí dali direto para a casa de Rute.
Realmente velha. Pra entrar, um portão de madeira carcomida e tábuas mal pregadas, a se arrastarem roucamente pelo chão de cimento grosso, anunciando a todos os moradores, por sob a tranca frouxa, inoperante, a chegada da dona e do visitante. Ah, esquecia-me de dizer, era uma espécie de vila da qual sua casa – se é que podíamos chamar aquilo de casa -, fazia parte. O banheiro ficava do lado de fora, e não tinha chuveiro. O banho vinha de um cano que esguichava um jato frio a se esbater no chão de cimento quebrado e nas paredes de onde um reboco mole caía ao menor suspiro. E você tinha que disputar o espaço com um vaso sanitário rachado, de milenar amarelidão. Realmente, onde viera parar minha querida Rute…!
Entramos. A porta não fechava direito. A cozinha no mesmo esquema do banheiro e no quartinho uma espécie de sofá-cama estreito, meio rustido, que pelo jeito só dava pra um. Aliás, pela área do quarto tinha que ser daquele tamanho mesmo. A roupa dela ficava toda amontoada em cima de um caixote. O telhado da casa, sem forro, esburacado, deixava passar chuva e vento, que entrava zunindo. Fazia um frio filho da puta!
O jeito, nesse primeiro dia, foi nos encaixarmos no sofá, eu apertado contra a parede e ela, sôfrega, de costas, se encaixando no meu pau. Que entrou na rachinha amiga, úmida e desejosa. Estávamos com muita saudade um do outro. O teto aberto, o reboco da parede caindo, o sofazinho ralo, ah, tudo isso era compensado por nossos corpos enlaçados e felizes de estarmos juntos.
Chamei um pedreiro, fizemos um orçamento básico, mandei arrumar o portão, a porta da casa, o banheiro mais ou menos, botar chuveiro … o telhado… ela, alheia, não reclamava nem sugeria nada. Comprei uma cama de segunda mão, armário… Fiquei lá uma semana. Coloquei em dia a casa dela e a do seu corpo (e do meu, hehehe…)
Voltei ao Rio, com os ecos do Carnaval paulistano ressoando na alma:
“Primeiro bonde a cavalo a conduzir
os namorados em noite quente de amor
Perfume o ar
Doirando o chão
Se faz garoa chovem rosas de ilusão”
Passei mais um tempo sem vê-la.
No início do verão seguinte apareceu na minha casa, apavorada.
– Tato, preciso ficar morando com você. E ninguém pode ficar sabendo.
Pensei que fosse armação, mas seu ar choroso (nunca a tinha visto assim) convenceu-me de que era melhor arriscar passar por enganado do que entregá-la à própria sorte. Talvez fosse simples exagero, e ficar com ela uns dias resolvesse o problema. Até que não era um preço tão caro assim.
Depois vi que o negócio era brabo.
– Depois daquele dia, Tato, arrumei emprego no supermercado dum japonês, lá perto de casa. Mas aí… formava fila grande na minha caixa. Vinha muita gente pobre, sabe, aquelas pessoas que você vê que não têm condição. Chegavam com umas mercadorias simples, feijão, fubá, açúcar, mas às vezes só tinham uns cinco cruzeiros pra pagar tudo. Aí eu somava até dar a conta do dinheiro delas e passava o resto sem marcar. Elas começaram a notar que o dinheiro rendia mais comigo e não passavam nas outras caixas. Ficava aquela filona…
(Sei, resolveu redistribuir renda a partir dos supermercados. Por conta própria. “Rute cria uma nova práxis revolucionária”, pensei, sarcástico.)
– Aí o japonês te mandou embora…
– Não, ele gostava de mim, no fim do dia minha caixa era a que mais dava dinheiro. Eu conseguia vencer a fila. Sabe que sempre fui rápida, né? (rápida? Meu bem, não exagera, determinada, talvez) e pra não deixar furo eu nem parava pra pensar , era pá, pá , pá, pega mercadoria olha o preço desta, registra, passa a outra sem olhar, sem registrar. No fim do dia tava todo mundo feliz: o japonês, os fregueses, e eu, porque aquilo ali é bom porque você nem precisa pensar, é pá, pá, pá…
(sei, pá, pá, pá, e ninguém vai descobrir?)
– Então, qual foi o problema?
– É que todo mundo só queria ir na minha caixa, tem uma favelinha ali perto, não sei se você viu, e eu fiquei conhecida… e as pessoas começaram a aproveitar. Tinha gente que passava presunto, queijo, teve um que passou até uísque e falou “aí, maninha, eu sei que tu segura esta, falou?”… Então veio um cara, disse que era namorado de uma amiga minha da vilinha onde moro, ele é assaltante, Tato, e me mandou passar a ficha do horário do carro-forte, que pegava o dinheiro do supermercado. O carro foi assaltado várias vezes…
– Quer dizer que você deu a ficha??!!
– Ué, Tato, ia fazer o quê? Minha amiga disse que o cara era violento.
– Então você caíu fora…
– Não, Tato, até aí ainda tava tudo bem. Cê num ouviu falar do assalto que teve no Bradesco de São Paulo, não?
– Esse de 800 milhões, que os assaltantes fizeram um buraco no prédio do lado, dando pra dentro do cofre?
– Esse mesmo. Foi esse cara. Mas tinha um vídeo, filmaram o assalto e ele foi preso. Só que tinha dado um carro pra minha amiga, e deixado uma parte do dinheiro com ela.
– Sim, mas qual o problema? O quê que você tem com isso?
– O quê que eu tenho com isso?! Ela foi presa, foi pro deíque…
– (deíque?)
– … e os caras do deíque tomaram o dinheiro e o carro dela pra deixar ela solta e perguntaram pra ela se ele tava envolvido em outras coisas e ela falou que sim e…
– Porra, Rute, mas o que que VOCÊ tem a ver com isso tudo?!
– Os assaltos dos carros-forte, do supermercado, Tato (sua voz estava lacrimosa), eles querem saber quem ajudou e a minha amiga me dedurou. Os caras do deíque já estiveram lá em casa perguntando por mim. Eu arrumei as malas e vim embora. Tenho que sumir uns tempos. Fui pegar um dinheiro que o japonês me devia e ele disse que eu não posso ir embora de jeito nenhum. Que sou o melhor caixa que ele já teve na vida. E não me deu meu dinheiro! Tato, tenho que sumir, até eles se esquecerem de mim – começou a chorar francamente.
Convenci-me de que a situação era crítica. Achei que devia lhe conceder asilo. Asilo político-social-amoroso.
– Mas por que não vai para sua casa?
Olhou-me como quem olha para um oligofrênico.
– Tato, eles vão no japonês, pegar meu cpf, título de eleitor, carteira de trabalho, tá tudo com meu endereço do Rio, de Mesquita. É o primeiro lugar pra me procurar. Como lá ninguém sabe de você… o melhor é ficar aqui.
E ficou.
Não é que a estratégia deu certo? Acompanhei o caso do assalto nos jornais. Ninguém procurava por ela. Pelo menos ninguém desse deíque, que descobri ser DEIC- Departamento de Investigações Criminais do Estado de São Paulo.
O único problema ocorrido no período foi o das universidades. Rute estava estudando numa universidade dessas pagou-passou de São Paulo e queria entrar para a Universidade do Estado do Rio de Janeiro. A estratégia era manjada. Você faz vestibular numa instituição privada fraquinha e depois pede transferência para uma do governo, melhor e de graça. Só que muita gente faz isso, e os critérios para poder entrar passaram a ser nebulosos. O primeiro deles era ter vaga, e o curso dela, Nutrição, sempre tinha.
Foi lá, fez entrevista, entrou na fila. E, é claro, nunca foi chamada.
Na cama, uma noite me confidenciou:
– Tato, tem uma professora lá, que me entrevistou, que diz que dá aula na Gama Filho (universidade paga, caríssima, mas boa); que se eu quiser, pode tentar me arrumar uma bolsa.
– Ué, e não aceitou? O quê que tem de fazer?
– Disse que tenho que ir conversar com ela num fim de semana desses, na casa dela, na Barra.
– E por que não foi ainda?
– Acho que ela é sapatão. Eu consigo a bolsa, mas tenho que…
– Aahnn…
Andou sumida uns tempos. Quando reapareceu, estava bem disposta, animada, cheia de livros. Tinha conseguido a bolsa.
Perguntei como foi.
– Ué, não te falei? Tive que dar o que ela queria.
O tom de voz era neutro, sem demonstrar revolta ou tristeza. Parecia aceitar aquilo como mais um componente do critério de seleção.
Nosso caso foi se diluindo. Do deíque, nem sinal. Vai ver, acharam que ela não tinha muito a ver com os assaltos, no que lhes dava razão. Voltou pra casa, em Mesquita. Depois soube que estava namorando um garotão de Ipanema, desses de boné virado ao contrário, bermudão e tênis de marca. Também entrei noutra. Mudei do Rio.
Foram-se uns oito anos desde aquela minha ida a Sampa.
Em 93 fui passar o Carnaval no Rio. Fiquei num hotel luxuoso, no Catete (bem, luxuoso para os padrões do Catete, né?).
Voltava da gandaia, de metrô. Madrugada de domingo. Carro vazio, eu de pernas abertas olhando os poucos remanescentes da farra noturna. Aqui um índio estilizado, do Cacique de Ramos (morador da Zona Sul em bloco de subúrbio… faz parte do show…). Ali uma baiana, saia rodada bonita, remanescente de alguma escola que desfilara no Sambódromo. Na Cinelândia entra um mulher posuda, terninho desses de aeromoça da Lufthansa, empurrando malinha elegante, sobre rodas. Relativamente alta. Magra, mas boa. Estação Glória. Chegou mais perto. Fui deslizando o olhar das pernas para cima e…
– Rute?!
– Ôi, Tato.
– Caramba, quanto tempo! De onde tá vindo?
– Da Alemanha. Acabei de chegar. Tem mais de cinco anos que tô lá…Tá indo pra onde?
– Tô num hotel aqui, tá chegando, desce aqui!
Desceu.
Entramos.
Contou-me que fora como clandestina para Munique. Lá se encontrara com uma amiga que limpava teatros e casas de show. Nos fins de semana ia para feiras – de livros, móveis, automóveis, calçados , o que houvesse – e montava uma barraca de comidas e bebidas brasileiras, “eles se amarram, sabe, Tato?”, e estava ganhando muito dinheiro. Problemas só quando era pega pela polícia e levada para a emigração. Eles queriam saber onde morava, quando iria embora. De tempos em tempos ela atravessava a fronteira, ia a Praga e renovava o visto de turista. Mas era um saco. Além disso, sem estar legalizada não podia ter carro. Pagava aluguel para o transporte dos babilaques da feira, e isso aumentava muito os custos. Ia ver se internacionalizava seu diploma de Nutricionista e voltava pra lá como estudante, cursando uma especialização qualquer.
Parecia mais madura. Tirou a roupa e nos deitamos. Segurei-lhe os ombros e beijei-a, pelas costas. Pediu-me que não fizesse isso. Estava indo encontrar-se com o namorado, em Ipanema, e já tinha comunicado a ele que estava chegando. Respeitei seu desejo. Aliás, só tinha tentado para não perder a viagem. O desejo era morno.
Acabara-se. Em cinzas, como um carnaval.
Pela manhã, tomamos um belo café da manhã, sob os olhares compreensivos do gerente e dos garçons. Carnaval é carnaval. Achavam-me um boa-vida.
Eu me sentia feliz em revê-la. Ela, não sei. Embarcara no estilo utilitarista do mundo globalizado. Comia de maneira pausada. Passava a geleia no pão com a calma que sempre tivera, mas agora com um jeito elegante, de contida sofisticação. O mesmo ar ausente, agora, um tantinho blasé, cidadã do mundo. Conversava impessoalmente, fosse aquela uma outra Rute (ou eu é que me tornara outra pessoa?). De qualquer forma, parecíamos reciprocamente impessoais.
Pensei perguntar-lhe; houvera amor entre nós? Não o fiz, naquele instante, abri mão da resposta. Sabe-a o leitor?
Fomos até a entrada do hotel. Deu-me um beijinho e partiu, as rodinhas da mala arranhando preguiçosamente a calçada.
Fiquei parado, relembrando coisas, as festas de Botafogo, o sexo quente das noites de Copacabana, a cabeça-de-porco de Sampa, concessão ao “amor que não pode dizer seu nome” em troca de vaga na universidade, o japonês do supermercado, assaltos a bancos e carros-fortes… Foi a última vez que a vi. Ao longe, os ecos de um carnaval de velhos tempos:
“... Perfume o ar
Doirando o chão
Se faz garoa chovem rosas de ilusão (iihh)
Perfume o ar
Doirando o chão
Se faz garoa chovem rosas de ilusão…”
(Goiânia, 25/08/03)
Pois é!
Juro que tenho uma Rute em mente. Não precisa dizer. É ela. Namorou, também, acho que o Zé Ricardo, certo?
Lembro bem, apesar de ela ser, realmente, bissexta. Que interessante!
Conheci tambem uma Rute…. eu acho que e a mesma… misteriosa como a Capitu…. voce tem noticias dela? Ela morou em minha casa em Sampa, proximo ao Shopping Morumbi, mas nunca nos disse qualquer coisa sobre si mesma…. nunca soube que rolava drogas na casa da Lisandra…. mas e sempre bom ser lembrada pelos amigos…. espero que voce nunca conte o episodio de como nos conhecemos…. a censura cortaria…. kkkkk