TEORIA POLÍTICA DO MOVIMENTO NEGRO BRASILEIRO
01/03/2013
Eustáquio Lawa
“Se é verdade que uma revolução pode falhar, mesmo que seja nutrida por teorias perfeitamente concebidas, ainda ninguém praticou vitoriosamente uma revolução sem teoria revolucionária” (Amílcar Cabral).
Somente um interesse apaixonado pode levar um sujeito a existir plenamente (Kierkegaard).
Reescrever periodicamente o script da vida só é possível no futebol (Hilário Franco).
Brando no modo e forte na ação (Companhia de Jesus).
Sempre que não podemos explicar adequadamente um dado estado de coisas histórico a partir do precedente, reconhecemos de fato a existência de um problema não resolvido, mas não insolúvel (Schumpeter).
“Ponho então em tua frente
dois caminhos diferentes:
vida e morte, escolherás!
Sê sensato: escolhe a vida…”
(Parte o pão, cura as feridas
Sê fraterno e viverás)
Não podemos continuar como espectadores de nossa própria marcha.
TEORIA POLÍTICA DO MOVIMENTO NEGRO BRASILEIRO
MÓDULO I
SUMÁRIO
Objetivo da obra
- Apresentação
Parte I – Princípios
- Introdução
- Ideologia
- Desigualdade sociorracial e Políticas Públicas
- Teoria Geral de Campo
- Transformação de energia
- Campo de Armazenagem de Energia – CAE
- Campo de Luta contra o Racismo – CLR
- Campo de Vivência Multirracial – CVM
- Interseções
– Área de Expansão de Energia – AEE (entre CAE e CLR)
– Núcleos de Equilíbrio – NE (entre CVM e CLR)
Parte II – O Terreno da luta
- A Questão Racial no Brasil
6. Intuição e Indicadores sociorraciais
7. Raça e Classe: abordagens lógica e psicológica
8. Motivações
9. O direito à insurgência
Parte III – Ação
10. Marco Lógico
11. Estratégias ideológicas
12. Ação simbólica: Dinâmica dos Pentagramas
12.1 Comunicação/Associação
12.2. Expansão
12.3. Luta
12.4. Controle de Espaços
13. Memorial do Movimento Negro
14. Inimigos
Parte IV – Referências Bibliográficas e Bibliografia
15. Referências Bibliográficas
16. Bibliografia
17. Anexos e Tabelas.
E se melhor não fui é porque, falto de gênio e energia, leguei a meus irmãos a árdua tarefa de acrescentar o que não pude perceber ou engendrar, suprimir o que se vê supérfluo ou inadequado e transformar em fatos o que possa soar como meras palavras e especulações.
OBJETIVO DA OBRA
Inicialmente, importa assinalar que as pessoas percebem as coisas de forma diferenciada. O que se apresenta aos sentidos não é absorvido e intelectualizado igualmente por todos os indivíduos. Cada um concebe o mundo de acordo com seus interesses, conhecimentos, história de vida, cultura, limitações físicas e condição sócio-econômica, entre outros vieses.
Sob tais aspectos, quanto maiores as diferenças entre grupos e pessoas, mais variadas as formas de interpretação de determinada realidade. E, sob o mesmo prisma, quanto mais próximos os indivíduos, grupalmente, mais próximas suas visões de mundo. O que não significa que as divergências eventualmente existentes sejam sempre inconciliáveis.
Tomemos como exemplo uma família que se dedica, há várias gerações, a construir transformadores de potência ou de distribuição de energia. Pode ser que muitos dos membros atuais não se interessem pelo ramo de negócio de seus ascendentes. Mas a maioria deles sabe do que se trata. Viveram aquilo, comeram e beberam daquele produto.
E falemos daqueles que não pertencem ao clã. Expressiva parcela não domina o assunto, como, eventualmente, você, amigo leitor ou leitora. No entanto, a maioria esmagadora de uma população urbana não vive sem energia elétrica, para cuja disponibilização tais equipamentos são vitais.
Os empresários da geração e da comercialização de energia transacionam continuamente com os fabricantes desses produtos, e milhares de famílias dependem desse setor da indústria. Entretanto, os filhos dos gerentes e operários de tais fábricas, na escola, recebem o mesmo tratamento dos de um fabricante de armas ou de sapatos. Isso é normal. Mas, é certo que, ao longo da vida, os primeiros têm maior probabilidade de compreender e valorizar aspectos técnicos de equipamentos elétricos do que estes últimos, cujos parentes não se dedicaram especificamente a atividades de tal natureza. E o reconhecimento do valor de um bem social não se pauta pela utilidade das coisas. Observa-se, por exemplo, que dificilmente alguém mostra atitude reverencial ante um transformador. Ou faz um poema em seu louvor. Enquanto para uma paisagem, um quadro a óleo ou uma bela casa…
Esse tipo de análise – da função social dos equipamentos elétricos – aplica-se, na devida proporção, aos produtos de todos os campos de trabalho: teatro, cinema, literatura, esportes, moda, política, etc.
Outro exemplo de diferentes interpretações de uma mesma realidade: o diálogo entre estrangeiros que visitaram a ilha de Cuba sob o regime marxista-leninista. Um grupo que conheça pouco ou nada da organização social do país ou que acredite serem competitividade e livre iniciativa mais importantes que universalização da saúde e da educação, ou que não goste de museus e não curta charutos, pode entender que as únicas coisas interessantes na Ilha são Varadero e Miramar – praia e bairro chiques – e é bem provável que não se interesse em voltar ao país, pelo menos sob o regime de Fidel. Já aquele que vê de forma diferente e tem simpatia pela forma de organização social ali vigente tem boa probabilidade de retornar. Não é isso?
Olharam o mesmo objeto? Sim. Mas viram e sentiram a mesma coisa? Creio que não.
Assim é este trabalho. Muitos se interessarão pelas concepções aqui apresentadas. Alguns o considerarão mesmo obra seminal e inadiável para o avanço da luta por equidade entre todas as etnias que compõem a nação. Outros, passarão ao largo de seu raio de abrangência.
Também a utilização de seu conteúdo será diferenciada. Se for levado a sério, como um manual para transformação étnico-social, ótimo. É o seu principal objetivo.
Mas pode ser visto de outras maneiras: algumas pessoas talvez o leiam por puro diletantismo; também essa forma de absorção não chega a ser censurável; alguns o contestarão e outros o criticarão acidamente (até sem ler, às vezes). Mas entendo ser este um trabalho necessário na atual fase da luta do negro por melhores condições de vida na sociedade brasileira. Propositivo, desmistificador. Destemido. E não pode ser adiado.
Pressupomos que @ leitor@ que se debruça sobre esta obra tenha conhecimento das várias expressões preconceituosas contra o negro disseminadas no País, de casos específicos de discriminação racial e, pelo menos de forma ligeira, das condições históricas em que se deu o tráfico negreiro para as Américas e das peculiares formas que assume o racismo no Brasil. Tais questões serão, evidentemente, aqui abordadas, porém, de forma já avançada e propositiva, sem que nos estendamos sobre lamentações estéreis e informações já tão difundidas que qualquer cidadão, a menos que tenha vindo de outro planeta, está cansado de saber.
APRESENTAÇÃO
Abordamos aqui as relações raciais no Brasil – com ênfase na interação dos negros com outras etnias – e seus reflexos sobre a sociedade, apresentando uma teoria política que se propõe a lançar as bases de um novo estado-nação que venha a proporcionar justiça e felicidade para todo o povo brasileiro.
Após preâmbulo com os objetivos e apresentação da obra, vem a Parte I – Princípios, enunciando os elementos que fundamentaram a elaboração da teoria, com análise dos aspectos gerais de ideologia aplicados ao caso brasileiro, dos indicadores sociais e, a partir de uma correlação com os elementos que permitem transformar energia potencial em outras formas de energia, delineamos a teoria propriamente dita, sendo identificados e caracterizados os campos sociopsicológicos em que será desenvolvida a luta política rumo à transformação social pretendida.
Em seguida, na Parte II — O Terreno da Luta —, descortina-se o pano de fundo em que se dará o processo de transformação, sendo analisados os diversos elementos que compõem a questão racial no Brasil, tais como os efeitos sobre cada protagonista e como são percebidos, os aspectos lógicos e psicológicos do constructo raça/classe, as motivações dos indivíduos e grupos e reflexões sobre o direito de populações oprimidas à insurgência.
Logo após, na Parte III — Ação —, é formatada uma proposta para o desenvolvimento de atividades integradas dos diversos grupos, pessoas e tendências que compõem o Movimento Negro Brasileiro para reverter a situação que hoje aflige a população negra, reunindo-se tanto ferramentas oriundas do planejamento estratégico convencional, como o “marco lógico” e o MAPP, quanto simbólicas, como a “dinâmica dos pentagramas”; esta última utilizada, primordialmente, como elemento de sinalização do avanço de cada organização política na ocupação de espaços de luta , servindo, pois, como elemento de permanente avaliação (visual, ideológico, político e simbólico). O capítulo é complementado com a proposta de construção de um Memorial do Movimento Negro, para homenagear aqueles que efetivamente contribuíram para o avanço da luta, e de elaboração de uma lista dos inimigos históricos dos negros.
Finalmente, na Parte IV – Referências Bibliográficas e Bibliografia, são apresentadas as obras e textos referidos no corpo do trabalho, acrescidas de Anexos e Tabelas que foram julgados desnecessários junto ao texto principal.
PARTE I – PRINCÍPIOS
1. Introdução
Os diversos aspectos da natureza e das relações humanas já foram objeto de diferentes abordagens. Que deram origem a outras tantas teorias.
Aristóteles entendia ser a Polítika, abordada em profundidade em sua obra de mesmo nome, um constructo que, além de afetar todos aqueles que vivem em comunidade, abrangeria a totalidade dos caminhos que podem conduzir o ser humano à felicidade.
Da mesma forma, Charles Darwin entendia serem as respostas que pretendia encontrar com a teoria evolucionista cruciais para que o homem descobrisse de onde veio, podendo explicar, por meio dela, praticamente tudo sobre seu passado e seu futuro.
Marx, ao examinar as relações de produção e seus efeitos sobre a forma de organização de uma sociedade, não podia conceber que qualquer tipo de avanço social se desse fora da atividade econômico-produtiva.
Aliás, economistas, em geral, têm a mania de julgar que sem o processo de produção e troca de bens a humanidade não existiria. É um axioma. Entretanto, no desenvolvimento de suas teorias, nunca deixaram de incluir premissas relativas ao contexto social em que estas teriam validade. As elucubrações de Schumpeter, no início do século XX, sobre o dinheiro, o crédito e os ciclos econômicos pressupunham um Estado organizado economicamente, onde vigorassem a propriedade privada, a divisão do trabalho e a livre concorrência. E, interagindo com seu ambiente de estudo, Ricardo, economista que antecedeu a Schumpeter e a Marx, ao dissertar sobre Renda, Lucro e Salários e elaborar sua famosa Teoria do Valor (1), já havia, ele próprio, acumulado grande fortuna como operador da Bolsa de Valores de Londres.
Na verdade, a maioria das pessoas julga importantíssima sua ferramenta preferencial de abordagem do universo, e tanto um profissional de Ciências Contábeis acha inaceitável que algo se passe fora do binômio débito-crédito, como um evangélico ortodoxo procura retirar da Bíblia respostas para todas as questões que afetem seu dia-a-dia. E um aficionado de futebol não consegue entender que alguém, em sã consciência, possa ignorar uma Copa do Mundo, em qualquer parte do globo em que a competição esteja ocorrendo. Enfim, já se disse que quem maneja bem o martelo tende a sair pelo mundo julgando que tudo é prego. Bem, acredito não ser este exatamente o nosso caso.
Aqui, pretendemos abordar as relações raciais no Brasil, seus reflexos sobre a sociedade e apresentar uma teoria política que se proponha a resolver o problema tal como por nós será apresentado. Diferentemente das tradicionais teorias existentes – evolucionista, marxista, econômicas e outras – não pretendemos criar uma cartilha que aborde todos aspectos da realidade, nacional ou internacional. Por mais que se queira tirar deste texto ilações que conduzam à resposta sobre qual deveria ser a culinária recomendável para a nação multirracial que proporemos, ou quais as práticas corporais mais saudáveis para o “novo” brasileiro que emergirá de tal sociedade, esses elementos não constam deste trabalho, e a opção entre goiabada cascão ou chucrute para comer , ou entre banho de água fria ou quente permanecerá a critério de cada indivíduo. Igualmente, em termos de abrangência internacional da teoria, os eventuais impactos sobre outras sociedades serão diferenciados e, apesar de aceitarmos que os elementos aqui apresentados possam introduzir reflexos nas políticas externas do Brasil com Haiti e Estados Unidos, por exemplo, acreditamos que várias ações aqui propostas terão pouca possibilidade de serem replicadas em países com maior homogeneidade racial, como República Democrática do Congo ou Dinamarca.
2. Ideologia
Por se constituir elemento fundamental para o desenvolvimento de uma luta política e sustentação de seus resultados, o campo ideológico merece ser examinado em primeiro lugar.
O conceito de ideologia aparece na França, no início do século XIX, a partir da obra de Condilllac (2), para quem todas as idéias nascem das sensações. No princípio, apresentada como uma “ciência das idéias”, a ideologia buscava conhecer a verdadeira natureza humana, com o objetivo de planejar uma pedagogia que levasse em conta “a maneira através da qual os seres humanos formulavam as idéias”. Entretanto, após seus primeiros esboços, por contrariar interesses de governantes da época, passou a ser ridicularizada e tida como um discurso teórico, sem praticidade, sendo este o sentido inicial introduzido por Karl Marx em sua Ideologia Alemã, obra realizada em torno de 1840, para criticar os hegelianos.
Posteriormente, o mesmo Marx, abandonando o sentido alienante associado ao termo, retorna um pouco às suas origens “sensíveis”, relacionando-a às “condições materiais de existência dos seres humanos”. Assim, Marx abandona a concepção inicial de ideologia, associada a meras idéias abstratas, e passa a operar no sentido de posicionamento político (3).
O termo veio sendo refinado ao longo do tempo e, tomando emprestados os significados gerais elaborados por Althusser, Poulantzas e Gramsci (4), entendemos ideologia ou discurso ideológico como “um conjunto de elementos retirados, por determinados grupos sociais, de sua prática coletiva, reelaborados de forma subjetiva e distorcidos em função dos interesses de grupos hegemônicos, de forma a fornecer vantagem competitiva aos componentes de tais grupos”. Nesse sentido, a partir de sua “validação”, a ideologia passa a ser considerada como atendendo a interesses gerais, mesmo para os elementos exteriores ao conjunto que dela se beneficia.
Apesar de se apresentar como possuindo fundamentos racionais, técnicos e científicos para dominar um “lugar social”, a ideologia lança também mão de elementos míticos, religiosos e metafísicos.
Althusser examina, em profundidade, o papel dos aparelhos ideológicos de Estado, apresentando as escolas, as igrejas, os meios de comunicação, os partidos políticos, os tribunais, as forças armadas e todo o aparato político-jurídico-coercitivo como dispositivos criadores e reprodutores de ideologia.
A ideologia avança insidiosamente buscando adquirir status “universal” e só se instala definitivamente no ethos de uma sociedade quando traz efetivas vantagens de ordem prática para o grupo hegemônico – e até mesmo para grupos externos a esse grupo, mas que tenham, eventualmente, acesso às migalhas excedentes.
Assim sedimentada, para que o grupo inferiorizado possa reduzir seu prejuízo, é necessário que, além de utilizar os instrumentos naturais de convencimento (para não dizer violência explícita), revele também as mistificações subjacentes às ideologias de dominação, o que é feito pelo uso de contra-ideologias.
Alguns questionamentos relevantes sobre Ideologia
A Ideologia é um processo consciente ou inconsciente?
Jean Paul Sartre não reconhece a existência de um processo ideológico inconsciente, considerando que isso implica isentar o ser humano da responsabilidade por seus atos (e suas escolhas). Para Sartre, as pessoas, a partir de condições sociais dadas, escolhem livremente seu destino, e define que uma escolha é de má-fé quando objetiva justificar práticas e procedimentos que asseguram interesses (de classes) e privilégios (pessoais) em detrimento do bem-estar dos “outros”. Nesse sentido, portanto, elas utilizam mentiras para consolidar seus interesses.
A Ideologia seria, então, uma mentira?
Talvez fosse importante diferenciar o que é produzido a partir de representação ideológica (inconsciente?) e o que é produto de intenção (consciente) de esconder, truncar, manipular ou inventar fatos com o objetivo de compatibilizar versões e acontecimentos, tornando coerentes pontos de vista estruturalmente apresentados, em defesa de interesses objetivos de raça, classe ou outro tipo de estratificação.
Para Karl Manheim (in Alves Filho, 2000), a “mentira” faria parte de uma “concepção particular de ideologia”, que surge quando o termo passa a denotar que estamos céticos das idéias e representações apresentadas por nosso opositor. Estas são encaradas como disfarces mais ou menos conscientes da real natureza de uma situação, cujo reconhecimento não estaria de acordo com seus interesses. Essas distorções variam numa escala que vai desde as mentiras conscientes até os disfarces semiconscientes e dissimulados. E se, por exemplo, pretende-se que um adversário esteja mentindo, ocultando ou distorcendo uma determinada situação de fato, pressupõe-se, não obstante, que ambos partilham critérios comuns de validade e, também, que é possível refutar mentiras e desfazer fontes de erro tendo por referência critérios aceitos de validade objetiva comuns a ambos os lados.
Quais seriam, então, as definições aceitáveis para Ideologia?
Processo de produção de significados, signos e valores na vida social (assemelha-se ao significado mais amplo de cultura). Essa acepção de ideologia é mais ampla que o sentido de “cultura”, que se restringe ao trabalho artístico e intelectual de valor reconhecido, porém é mais restrita que a definição antropológica de cultura, que englobaria todas as práticas e instituições de uma forma de vida;
Um corpo de idéias (verdadeiras ou falsas) característico de um determinado grupo ou classe social (e que confere certa posição a um sujeito);
Idéias (falsas?) que ajudam a legitimar um poder político dominante. Promoção e legitimação dos interesses de (tais) grupos em face de interesses opostos. Os interesses em questão devem ter alguma relevância no sentido de apoiar ou desafiar toda uma forma de vida política. Falar ideologicamente tem, às vezes, um desagradável tom de oportunismo, sugerindo uma prontidão para sacrificar a verdade ante objetivos menos honrados, por meio de uma “comunicação” sistematicamente distorcida (distorção e dissimulação);
Formas de pensamento motivadas por interesses sociais, ou seja, crenças falsas ou ilusórias oriundas, não de interesses de uma classe dominante, mas da estrutura material do conjunto da sociedade como um todo. O exemplo mais célebre de ideologia neste sentido é a teoria de Marx sobre o fetichismo da mercadoria.
Oclusão semiótica ou Confusão entre realidade lingüística e realidade fenomenal:
♦ Como na questão levantada por Eagleton (1997): “… a atitude dos liberais norte-americanos contemporâneos quanto à desesperança e angústia sem fim em que vivem os jovens negros nas cidades americanas. Acaso dizemos que essas pessoas devem ser ajudadas porque são nossos companheiros seres humanos? Poderíamos fazê-lo, mas é muito mais persuasivo, tanto moral como politicamente, descrevê-las como nossos companheiros norte-americanos – insistir que é ultrajante para um norte-americano ter de viver sem esperança.”
Nota-se, aqui, um desvio de foco, uma tentativa de incluir o negro no universo nacional, enfraquecendo sua luta no plano racial.
♦ Afirmar, em uma conversa corriqueira, que alguém está falando ideologicamente é, com certeza, afirmar que se está avaliando uma determinada questão segundo uma estrutura rígida de idéias preconcebidas que distorce a compreensão. “Vejo as coisas como elas realmente são; você as vê de maneira tendenciosa, através de um filtro imposto por algum sistema doutrinário externo”. Há, em geral, uma sugestão de que isto envolve uma visão extremamente simplista de mundo – que falar ou avaliar “ideologicamente” é fazê-lo de maneira esquemática, estereotipada, e talvez com um toque de fanatismo. Não obstante que, sem algum tipo de preconcepção (pré-entendimento, segundo Heidegger), nem sequer seríamos capazes de identificar uma questão ou situação, e muito menos de emitir qualquer juízo sobre ela. Não existe tal coisa como pensamento livre de pressupostos. Então, qualquer idéia nossa poderia ser tida como ideológica.
♦ O pensamento “dele” é tacanho, o “seu” é doutrinário e o “meu” deliciosamente flexível. Existem, decerto, formas de pensamento que “esgotam” uma determinada situação a partir de princípios gerais preestabelecidos…
A crença de que a ideologia é uma forma esquemática e inflexível de se ver o mundo, em oposição a alguma sabedoria mais simples, gradual e pragmática, foi elevada, no pós-guerra, da condição de uma peça de sabedoria popular à posição de uma elaborada teoria sociológica. Para o teórico político norte-americano Edward Shils, as ideologias são explícitas, fechadas, resistentes a inovações, promulgadas com uma grande dose de afetividade e requerem a total adesão de seus devotos. O que se quer dizer com isso é que a (ex)União Soviética está nas garras da ideologia, ao passo que os Estados Unidos “vêem as coisas como elas realmente são”. Tentar alcançar algum objetivo político modesto e pragmático, tal como derrubar o governo democraticamente eleito do Chile, é uma questão de “adaptar-se de modo realista aos fatos”. Já enviar tanques à Tchecoslováquia é um exemplo de “fanatismo ideológico”.
♦ Quando se considera o termo Ideologia como um “sistema de crenças associado a poder” entende-se essa associação como legitimação do poder de uma classe ou grupo social dominante. Estudar ideologia “é estudar os modos pelos quais o significado (ou significação) contribui para manter as relações de dominação. Um poder dominante pode legitimar-se promovendo crenças e valores compatíveis com ele; naturalizando e universalizando tais crenças de modo a torná-las óbvias e aparentemente inevitáveis; desqualificando idéias que possam desafiá-lo; excluindo formas rivais de pensamento, mediante, talvez, alguma lógica não declarada, mas sistemática; obscurecendo a realidade social de modo a favorecê-lo. Em qualquer formação ideológica genuína, todas as seis estratégias podem estabelecer entre si interações complexas.
♦ Todas as ideologias são oposicionistas e se contrapõem à sabedoria prática dominante? Os partidários do socialismo são ideológicos, mas defensores do capitalismo, não? O filósofo político Martin Seliger define ideologia como “ conjuntos de idéias pelas quais as pessoas postulam, explicam e justificam os fins e os meios da ação social organizada, e especialmente da ação política, qualquer que seja o objetivo dessa ação, se preservar, corrigir, extirpar ou reconstruir uma certa ordem social”.
♦ Ampliar o conceito de ideologia a ponto de torná-lo coextensivo a tudo é simplesmente destituir-lhe a força, o que também é conveniente para a ordem dominante. Guerra de libertação de El Salvador x Bate boca de crianças por causa de uma bola: é necessário pensar hierarquicamente. As pessoas só são relativistas em termos retóricos.
♦ Examinando-se com relativa atenção os discursos com que você é bombardeado dentro da multirracialidade brasileira, pode ser surpreendente a forma como determinadas elocuções são flagrantemente ideológicas. Nasce uma criança de um casal branca – negro. A sogra do negro aproxima-se e sorri, feliz: que bom, nasceu com o cabelo lisinho igual ao da mãe. Ou “nasceu clarinha igual à mãe”. Ou, “ai, meu Deus, ainda bem que não nasceu com esse nariz amassado do pai”. Parece evidente que o gosto estético da filha não é levado em consideração. E que esse pai, se tiver um mínimo de dignidade, nunca receberá a sogra em sua casa com prazer. Tais observações perderiam o sentido se ocorressem num país como o Congo, por exemplo. Parece que tal situação é diferente do caso em que, num casal branco, um dos cônjugues tem um nariz grande e qualquer dos avós se mostre aliviado pelo neto ou neta não haver herdado tal característica. As pessoas podem, legitimamente, manifestar suas preferências estéticas, porém, no caso de grupos em desvantagem social, como o anteriormente mencionado, tais observações apresentam um cunho manifestamente ideológico.
♦ A ideologia tem mais a ver com quem está falando o quê com alguém e com que finalidade. O que há de mais ideológico quanto a determinados termos de um discurso são os interesses de poder a que eles servem e os efeitos políticos que geram. O fato então é que o mesmo fragmento de linguagem pode ser ideológico em um contexto e não ser em outro; a ideologia é uma função de uma elocução com seu contexto social. Seria útil discriminar entre dois níveis de interesse, um que se poderia dizer ideológico e outro que não. O termo (ideológico) só é eficaz e elucidativo na medida que nos ajuda a distinguir entre aqueles interesses e conflitos de poder que, em qualquer época, são claramente centrais a toda uma ordem social e aqueles que não o são. Uma certa solidariedade prática está embutida nas estruturas de qualquer linguagem compartilhada, mesmo que grande pare desta linguagem esteja permeada pelas divisões de classe, gênero e raça. Para decifrar um sistema de discurso ideológico, é necessário que já se tenha dominado os usos normativos e não-distorcidos dos termos. Quando alguém afirma para um grupo de pessoas que o Arcanjo Gabriel está se preparando para fazer uma aparição na próxima terça-feira, podemos imaginar que esta pessoa passa por uma crise de “falsa consciência”, mas é razoável também considerar, dependendo do contexto, que esta falsidade possa estar intimamente associada a interesses materiais bem definidos e à reprodução de um poder político dominante.
♦ As ideologias (dentre elas, o racismo), para serem verdadeiramente eficazes (para o branco), devem dar algum sentido, por menor que seja, à experiência das pessoas; devem ajustar-se, em alguma medida, ao que elas conhecem da realidade social com base em sua interação prática com esta. Devem comprometer-se, de maneira significativa, com as necessidades e desejos que as pessoas já têm, captar esperanças e carências genuínas, reinfleti-las em seu idioma próprio e específico e retorná-las a seus sujeitos de modo a converterem-se em ideologias plausíveis e atraentes. Devem ser “reais” o bastante para propiciar a base sobre a qual os indivíduos possam moldar uma identidade coerente, devem fornecer motivações sólidas para a ação efetiva, e devem empenhar-se, o mínimo que seja, para explicar suas contradições e incoerências mais flagrantes. Qualquer ideologia dominante que falhasse por completo em harmonizar-se com a experiência vivenciada por seus sujeitos seria extremamente vulnerável, e seus representantes fariam bem em trocá-la por outra. Mas nada disso contradiz o fato de que as ideologias, com muita freqüência, contêm proposições importantes que são absolutamente falsas: que os judeus são seres inferiores, que a mulheres são menos racionais que os homens, que os fornicadores serão condenados ao suplício eterno.
♦ Dizer que um enunciado é ideológico significa afirmar que está carregado de um motivo ulterior estreitamente relacionado com a legitimação de certos interesses em uma luta de poder. Alguns enunciados ideológicos são verdadeiros no que afirmam, mas falsos no que excluem. “Esta terra de liberdade”, segundo disse um político norte-americano, pode ser uma asserção bastante verdadeira se o que se tem em mente é a liberdade de praticar a própria religião ou ganhar dinheiro especulando, mas não quando se considera a liberdade de viver sem medo de ser assaltado ou de anunciar, no horário nobre da televisão, que o presidente é um assassino. Um comentário do tipo “se permitirmos que os paquistaneses morem em nossas ruas, nossas casas vão se desvalorizar” talvez seja verdadeiro, mas pode implicar a suposição de que os paquistaneses são seres inferiores, o que é falso. “Sou brasileiro e não desisto nunca”, do Ronaldo Fenômeno, é instigante, mas não significa que todo brasileiro seja assim ou que os bolivianos, necessariamente, desistam com mais facilidade do que a gente.
Racismo
Partindo da definição de racismo como “uma ideologia, uma doutrina ou sistema explícito de representações e avaliações que justifica e legitima ações, valendo-se para tanto do conceito de raças e de uma suposta hierarquia entre elas” (Taguieff, citado em Vieira Junior, 2005), entendemos que sua eliminação passa pelo desenvolvimento de discursos e práticas que se contraponham à ideologia racial existente, pela desqualificação dessa doutrina e pela reestruturação desse sistema de representações e avaliações que, hoje, tenta colocar os negros em posição de desvantagem social.
Preconceito
Trataremos, ao longo desta obra, como preconceito, qualquer juízo “a priori” de uma pessoa sobre o provável comportamento de outra (ou de um grupo) sem qualquer evidência racional, técnica ou científica, baseado em estereótipos, mitos ou mesmo lendas e paranóias, de cunho individual ou coletivo. Diferentemente de um pré-conceito, que pode ser assumido como um juízo provisório e que atua como um mecanismo de defesa – real ou psicológico -, o preconceito serve às pessoas limitadas como elemento de generalização comportamental, por simplificação ou má-fé. Exemplos de preconceito:
a) atribuir a pessoas de determinada região as características de serem mais preguiçosos, desmazelados, incultos ou violentos, sem qualquer fundamento racional, sem registros estatísticos consistentes ou experimentos científicos replicáveis e realizados sob condições controladas;
b) atribuir a pessoas de determinado gênero ou grupo étnico as características de serem intrinsecamente mais fortes (fracos), inteligentes (burros), emotivos (racionais), violentos (passivos), sexualizados (frios), monógamos (polígamos), heterossexuais (homossexuais), artistas (técnicos) e outras, sem considerar para cada caso o grau de influência de variáveis históricas, econômicas, sociais, genéticas, geopolíticas e culturais, etc.;
c) presumir determinados comportamentos como devidos a características inatas ou hereditárias, quando não há fundamentos científicos ou experimentos consistentes que confirmem tais presunções;
d) utilizar expressões preconceituosas como “trazem um paraíba aí para apitar um jogo do Vasco, só podia dar nisso aí” (evidentemente, o Vasco havia perdido…); “a situação ficou preta”; “estão denegrindo a reputação dela”; “estão judiando dele” e outras. Em tais casos, o emissor da expressão alega que muitos dos grupos que citamos como ofendidos não se sentem como tal, e até sorriem quando se fala no assunto ou perante as infames piadas contadas pelo grupo hegemônico. Entendemos que há determinados componentes psicológicos e psicanalíticos que introduzem vários níveis de conformismo e aceitação, mas é inegável que a maioria da população-alvo tem sua auto-estima e potencial argumentativo reduzidos. Evidentemente, não se espera que alguém seja assassinado por utilizar expressões “politicamente incorretas”. Entretanto, tais pessoas deverão arcar com o ônus de sua intemperança perante a comunidade ofendida, que tem o direito de retaliar na mesma proporção. Expressões do tipo “forte como um tigre” ou “mau como uma cobra” apresentam impactos diferentes de, por exemplo, “selvagem como um cafre”(5) . Apesar de, nos dois primeiros casos, não se esperar qualquer manifestação de orgulho da comunidade dos tigres ou de insatisfação dos ofídios; no último caso, todos os grupos e pessoas que apresentam alguma afinidade com aquele povo podem e devem dar a devida resposta à provocação.
Conforme analisaremos a seguir, o principal criador e disseminador do preconceito é a ideologia.
Discriminação
A materialização do racismo e do preconceito se dá por meio da discriminação, onde os indivíduos pertencentes aos grupos hegemônicos utilizam métodos e processos, refinados ou não, para excluir determinadas pessoas, pertencentes ao(s) grupo(s) estigmatizado(s), do acesso a bens e direitos alcançados pela sociedade comum. A discriminação é um subproduto do racismo. Sob tal aspecto, quando se luta contra o racismo, a luta contra a discriminação vem a reboque.
A discriminação assume aspectos variados. Dentre as formas institucionalizadas nos estados racistas, a mais recente e conhecida é a segregação racial, praticada nos Estados Unidos e África do Sul, onde se tinham banheiros públicos, meios de transporte e locais de residência separados por raça; reservados aos negros, evidentemente, os piores lugares. Os indicadores relativos aos níveis de educação, saúde e de condições de emprego, trabalho e renda acompanham, em precariedade, tais situações. E os índices de violência, mortalidade infantil, desagregação familiar, trabalho escravo, doenças e morte pelas drogas seguem tal padrão. No Brasil, logo após a tardia e incompleta abolição da escravatura, em 1888, foi desenvolvida, por iniciativa governamental, política de incentivo à imigração européia para a lavoura e para a incipiente industrialização, em detrimento de apoio às populações negras recém libertadas.
A ONU utiliza a seguinte definição de discriminação racial, estabelecida na Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial, adotada em 1966 e ratificada pelo governo brasileiro por meio do Decreto nº 65.810, de 8 de dezembro de 1969:
Na presente Convenção, a expressão «discriminação racial» visa qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência fundada na raça, cor, ascendência na origem nacional ou étnica que tenha como objetivo ou como efeito destruir ou comprometer o reconhecimento, o gozo ou o exercício, em condições de igualdade, dos direitos do homem e das liberdades fundamentais nos domínios político, econômico, social e cultural ou em qualquer outro domínio da vida pública . (Parte 1 – Artigo 1º)
Como veremos a seguir, no capítulo referente a “Desigualdade sociorracial e Políticas Públicas”, o segregacionismo racial permanece no Brasil até os dias de hoje, e se constitui na principal forma de racismo institucionalizado.
Evidentemente, o fato de a polícia brasileira caracterizar todo negro como possível marginal, pedindo apresentação de documentos por motivos racionalmente inexplicáveis, intimidando e coagindo todo aquele que não pertença à raça hegemônica, pode perfeitamente ser correlacionado com a “Lei do passe”, vigente na África do Sul no período do Apartheid.
No Brasil, dentre as formas institucionalizadas de discriminação praticadas pelo aparelhos de estado, destacamos três:
a) promover maus tratos, tortura e mesmo extermínio de determinadas pessoas e de grupos em virtude de sua composição racial, étnica ou cultural. A identificação do grupo oprimido é feita pela cor da pele, pelas manifestações culturais, pelas formas de se vestir e falar, pelo estrato social, por locais de moradia e origem regional;
b) impedir, pela força, manifestações de grupos políticos sob a alegação de inexistência dos motivos para a manifestação, como, por exemplo, contra o racismo e a discriminação racial. Ora, se a problemática que originou a demanda, efetivamente não existir, que a manifestação se esgote, então, por si mesma;
c) desenvolver políticas educacionais e culturais que omitam ou reduzam a participação histórica e moderna de determinados grupos, como os afro-brasileiros, na formação cultural, econômica, política e psicossocial do País;
Entre as formas mais comuns de discriminação disseminadas na população brasileira, destacamos:
a) designar para as pessoas do grupo discriminado “posições” na sociedade. Como exemplo, para o negro: cantor, compositor, músico, dançarino, jogador de futebol, artesão, trabalhador doméstico, cozinheiro, caixa de supermercado, trabalhador em condição insalubre e de má remuneração, operador de telemarketing e outras, enquanto, para o branco, espera-se que seja engenheiro, médico, diplomata, empresário, senador, ministro de tribunais superiores, analista de sistema, etc.
Algumas atividades, como a de técnico em informática, vendedor de loja, ator de segunda categoria e garçom, são absorvidas pelo branco pobre, mais pelo fato de passar pela cabeça de alguns empresários a idéia de que a interação com o público usuário de seu serviço se dê melhor utilizando uma pessoa branca do que uma negra. É quando seu preconceito se torna discriminação trazendo danos insuportáveis para a sociedade.
b) promover maus tratos, tortura e mesmo extermínio de determinadas pessoas e de grupos em virtude de sua composição racial, étnica ou cultural;
c) imputar, ao grupo que se insurge contra o racismo, o ônus de estar criando o racismo. Ora, acusa-se o grupo que luta contra a discriminação de gênero de estar criando a discriminação de gênero? Ou contra o trabalho escravo de ser contra o trabalho? Muito estranho!
d) Caracterizar como racistas e promotoras de desigualdade as ações afirmativas para ampliar a participação dos negros em áreas de melhor educação, renda e trabalho. Diferentemente, e contraditoriamente, costumam aceitar como correta a discriminação positiva em favor do deficiente físico, do idoso e da mulher.
Quais seriam as perspectivas de uma luta racial vencedora, no Brasil?
O opressor mais eficiente é aquele que persuade seus subalternos a amar, desejar e identificar-se com seu poder, e qualquer prática de emancipação política envolve, portanto, a mais difícil de todas as formas de libertação: o libertar-nos de nós mesmos.
O outro lado da história é igualmente importante: se tal dominação deixar, por muito tempo, de propiciar suficiente gratificação a suas vítimas, então estas, com certeza, acabarão por revoltar-se contra ela.
Se é racional acomodar-se a uma mistura ambígua de sofrimento e prazer marginal, quando as alternativas políticas mostram-se perigosas ou obscuras, é também racional rebelar-se quando o sofrimento ultrapassa em muito as gratificações, e quando tal ação encerrar mais ganhos do que perdas.
Não é suficiente para uma mulher ou um colono serem definidos como uma forma de vida inferior: é preciso ensinar-lhes ativamente esta definição, e alguns deles revelam-se brilhantes bacharéis nesse processo. É surpreendente quão hábeis, engenhosos e perspicazes podem ser os homens e mulheres em provar para si mesmos que são incivilizados e burros.
Assim, ignorar ou aceitar os efeitos negativos das ideologias significa investir cada vez mais na infelicidade individual e coletiva. Mas, mesmo após termos consciência da opressão que se abate sobre nós (ou por causa dela), é possível que fiquemos paralisados, sem poder de reação. Entretanto, podemos sempre sonhar, e buscar transformar sonhos em realidades.
E é porque as pessoas não param de desejar, lutar e imaginar, mesmo nas condições aparentemente mais desfavoráveis, que a prática da emancipação política é uma possibilidade genuína.
Hoje, é razoável aceitar que a idéia de um “tema revolucionário coletivo” vem perdendo força, e que o conceito de revolução tradicional vem sendo substituído, cada vez mais, por microestratégias e desconstruções locais.
“Indutores de comportamento”, operando em microáreas sociais as mais diversas, compatíveis ou não conflitantes com os objetivos do Movimento Negro, podem se mostrar mais efetivos do que ativistas orgânicos convencionais. Por “indutores de comportamento”, entendemos:
– Produtores e animadores culturais (grupos de dança, rodeios, circos, torcidas esportivas, blocos carnavalescos e escolas de samba etc.);
– Imprensa escrita, rádio e TV;
– Grupos de rap, funk, hip-hop e International Sound System em geral;
– Redes sociais e ativistas da web;
– Associações comunitárias de populações carentes, movimentos sem-terra, sem-teto e de catadores de lixo, entre outras.
Talvez, em nível individual, o negro brasileiro que tenha se mostrado capaz de se tornar vencedor dentro de um sistema hegemonicamente branco, necessite de um esforço maior para entrar nessa luta, mesmo após constatar que a sobrevivência de sua etnia está em jogo. Nesse caso, se nenhuma argumentação de humanismo, desprendimento e heroísmo conseguir mobilizá-lo, resta lembrar a observação de Canetti (1983), relativa a seu comportamento: “o sobrevivente a um sistema escravagista é aquele que teve que conceder para sobreviver, a quem o opressor não teme, porque ele não representa uma ameaça ao seu grupo; é, enfim, aquele que trocou a dignidade da morte pela vergonha da vida”.
Evidentemente, não se trata aqui de convocar ao suicídio coletivo todos os negros que se mostram individualmente eficazes dentro de um sistema em que triunfaram mesmo com todas as probabilidades contra. Trata-se simplesmente de persuadi-los de que a vitória coletiva deve, ao fim e ao cabo, prevalecer sobre o triunfo e as glórias individuais.
E uma vez que se tenham libertado das causas desse sofrimento, devem ser capazes de olhar para trás, reescrever suas histórias de vida e reconhecer que aquilo de que desfrutam agora é o que teriam desejado anteriormente para todos, caso tivessem podido estar conscientes disso.
Notas sobre a Parte I – Princípios
(1) O valor de uma mercadoria, ou a quantidade de qualquer outra pela qual pode ser trocada, depende da quantidade relativa de trabalho necessário para sua produção e não da maior ou menor remuneração que é paga por esse trabalho (Ricardo, [1821] 1982).
“A palavra valor tem dois significados diferentes, expressando, algumas vezes, a utilidade de algum objeto particular e, outras vezes, o poder de comprar outros bens conferido pela posse daquele objeto. O primeiro pode ser chamado valor de uso; o outro, valor de troca. As coisas que têm maior valor de uso, têm, frequentemente, pequeno ou nenhum valor de troca; e, ao contrário, as que têm maior valor de troca, têm pequeno ou nenhum valor de uso”. (Smith, Adam. Wealth of Nations, Livro Primeiro. Cap. IV; citado em Ricardo, [1821], 1982)
(2) Originalmente postulado como um campo de estudos destinado a formar a base de todas as ciências, a “ciência das idéias”, a ideologia aparece pela primeira vez no livro Eléments D’Idéologie, de Destutt de Tracy, em 1801. Segundo Canguilhem (1977), “o projeto desta ciência era o de tratar as idéias como fenômenos naturais que exprimiam a relação entre o homem, organismo vivo e sensível, e o seu meio natural de vida”. Para Destutt de Tracy, o que o estudo da ideologia possibilita é o conhecimento da verdadeira natureza humana. Ao escrever o livro, tinha em mente não construir apenas um saber pelo saber, mas sim um saber voltado para a prática. Para o autor, a intenção de conhecer a natureza humana abrigava um projeto pedagógico: o de planejar o ensino levando em conta a maneira real através da qual os homens formulavam idéias. Como Condillac, Destutt de Tracy considerava que “o pensar correto é o fundamento para a ação política correta”.
Em 1812, Napoleão Bonaparte acusou Destutt de Tracy e outros professores, que estavam se opondo a seu governo, de “fazer ideologia, no sentido de especulação abstrata, falsa e irresponsável”. Intelectuais contemporâneos de Napoleão, entre os quais o romancista François de Chateaubriand, valeram-se amiúde do termo ideologia com o sentido dado pelo imperador da França, colaborando para popularizá-la com o sentido pejorativo em círculos políticos e eruditos. (Alves Filho, 2000)
(3) Vivendo na França durante dois anos na primeira metade da década de quarenta do século XIX, Marx conheceu o termo “ideologia” num campo semântico em que a palavra era entendida em um duplo sentido: no de Destutt de Tracy, ideologia era “doutrina geral acerca das idéias”; no definido por Bonaparte e popularizado por alguns escritores, ideologia era a qualidade atribuída à especulação abstrata, sendo ideólogo sinônimo de pensador irrealista.
É plausível que Marx e Engels tenham se valido do sentido pejorativo com que o termo ideologia se “popularizara” para que a maneira como ironizavam os “ideólogos alemães” fosse mais claramente compreendida por seus contemporâneos.
Posteriormente, passaram a relacionar ideologia às condições materiais de existência dos homens. No livro “A ideologia Alemã”, escrevem: “ … ao produzir os seus meios de existência, os homens produzem indiretamente sua própria vida material”, o que incluiria a “representação dessa vida”, ou seja, produziriam a ideologia.
Marx, a exemplo de outros clássicos, não fornece uma teoria pronta, com noções e conceitos acabados. Mesmo porque elaborar uma teoria, propondo-a científica, e dá-la por acabada, não tem sentido. Tal procedimento violenta um princípio elementar de todo aquele que, como Marx, dedica-se à atividade científica, ou seja: o princípio de que a ciência tem começo (ponto de ruptura com o senso comum), mas não tem fim. Marx nunca deu seus estudos por “conclusos”.
Marx e Engels entendem a consciência particular como resultante da experiência vivida de cada ser humano, ou seja, como um “produto do meio sensível imediato”. Assim, as “idéias coletivas” (a ideologia propriamente dita), seriam “maneiras de pensar” cujo conteúdo central, bastante cristalizado, “representa a expressão ideal das relações materiais dominantes”, e é construído pela classe que, por deter os meios da produção material, detém também os meios de produção intelectual.
Cada nova classe no poder é obrigada, quanto mais não seja para atingir seus fins, a representar seu interesse como sendo o interesse comum a todos os membros da sociedade ou, exprimindo a coisa no plano das idéias, a dar a seus pensamentos a forma de universalidade, a representá-los como sendo os únicos razoáveis, os únicos realmente válidos.
Para Marx, “não é a consciência do homem que determina o seu ser, mas, pelo contrário, o seu ser social que determina sua consciência”.
Como é na ideologia (e não na consciência) que se dá essa inversão, pode-se concluir que são as formas cristalizadas de pensamento social que explicam as formas das consciências individuais. (Alves Filho, 2000)
(4) Segundo Althusser, a ideologia funciona como algo análogo ao cimento em uma construção, ou seja, a ideologia não é apenas um conjunto de idéias, mas também de práticas, presentes em todas as partes da estrutura social, assegurando sua coesão.
Portanto, a ideologia, implicando “inversão da determinação do real”, é fundamental para dar coesão (cimentar) as relações sociais em qualquer formação social e, desta maneira, assegurar a produção e a reprodução de um modo de produção em “momento” sempre dado, criando padrões de “conformismo” que possibilitam o ajustamento dod homens (e classes) aos papéis sociais vividos (de dominantes ou de dominados), fazendo crer que os objetivos dos primeiros passem por “interesses gerais”.
A função estrutural da ‘ideologia’, na totalidade social, seria precisamente, ao contrário da ciência, ocultar as contradições reais; reconstruir, num plano imaginário, um discurso relativamente coerente que sirva de horizonte ao “vivido” dos agentes, dando forma a suas representações segundo as relações reais e inserindo-as na unidade das relações de uma determinada conformação.
Ela se ‘materializa’, operando, praticamente, como ‘ideologia cimento’, através da atuação dos “Aparelhos Ideológicos de Estado” (AIEs)
Althusser distingue, no interior do “aparelho de Estado” das formações capitalistas, entre o “aparelho repressivo” e os “AIEs”. Para ele, o aparelho repressivo é necessariamente centralizado (estatal), enquanto os AIEs são descentralizados, múltiplos, distintos e relativamente autônomos. Considera que ambos atuam tanto pela repressão quanto pela ideologia, frisando que o aparelho repressivo funciona principalmente através da repressão e os AIEs funcionam principalmente através da ideologia. O aparelho repressivo tem de ser necessariamente centralizado porque é pelo monopólio da chamada “violência legítima” que o governo de qualquer Estado garante, em última instância, a ordem social. Por outro lado, sendo descentralizados, os AIEs são “campos objetivos de contradições que expressam, de formas ora limitadas ora mais amplas, os efeitos dos choques entre as lutas dos brancos contra os negros, assim como de suas formas subordinadas. Não existe aparelho puramente ideológico. Referindo-se a escolas como AIEs, Althusser observa que a repressão se dá por meios próprios, como sanções, exclusões, seleções, etc.
A imprensa, nomeada por Althusser como um dos Aparelhos Ideológicos de Estado da informação, possui uma secular estratégia para veicular ideologias específicas travestidas de universalidade.
Ao competirem por público consumidor, os órgãos da imprensa procuram dar ênfase aos aspectos objetivos contidos na informação. Desta forma, isenção, independência em relação a poderes, atendimento aos interesses públicos e compromisso com a verdade são os componentes estruturais da linguagem utilizada pelos jornais, visando aumentar sua credibilidade e, em decorrência, o número de leitores e o crédito contábil.
A credibilidade que os leva a manter-se (os jornais da “grande imprensa”), ao longo do tempo, entre os mais vendidos, permite que operem como possantes produtores e reprodutores da ideologia, ou seja, como AIEs. (Gramsci, Althusser, Poulantzas, in Alves Filho, 2000)
(5) Antonio José de Morais Durão chama a atenção para um grupo especial de habitantes da Capitania: os “curibocas, cabras, cafus e mais cafres de que a terra só é abundante”. Os critérios raciais que utiliza contêm significados que ele talvez tenha apreendido de sua vivência na colônia. É relevante que o autor inicie sua descrição da capitania com estas palavras:
Vermelho se chama na terra a todo índio de qualquer nação que seja; mameluco ao filho de índio e índia; caful ao filho de preto e índia; mestiço ao que participa de branco, preto e índio; mulato ao filho de banco e preta; cabra ao filho de preto e mulata; curiboca ao filho de mestiço e índia; quando não se podem bem distinguir pelas suas muitas misturas se explicam pela palavra mestiço o que eu faço, compreendendo nela os cabras e curibocas.
A certa altura do texto, os tipos descritos acima terão seu significado comungado na palavra cafre. Mas, este não é um conceito formulado a partir da experiência portuguesa neste lado do Atlântico. Ana P. Wagner informa que cafre “era a designação genérica que os portugueses davam para os africanos que viviam na região da Costa Oriental da áfrica”(Wagner, 2006). O dicionário de Raphael Bluteau dedicado a El Rey de Portugal D. João V, editado em três volumes ao longo do século XVIII, assim descreve:
… nome que os árabes dão a todos, os que negão a unidade de hum Deos. Dizem outros, que cafre, he o nome, que no Reyno do Congo se dá aos q nos seus casamentos, não repàrão em grão algum de consangüinidade. Vid. Africam Ptolomei. Na opinião de outros cafre, quer dizer sem ley, & a estes povos se deo este nome, como a gente bárbara, que nam tem ley, nem Religião. (…) Ha muitas naçoens de Cafres; os mais crueiss de todos… etc.
(Gerolineto Fonseca, 2008)